Por falta de verba, MEC só vai comprar livros de Português e Matemática para crianças do fundamental.

Recentemente, o Ministério da Educação (MEC) anunciou que, por “falta de verba”, irá restringir a compra de livros didáticos para crianças do ensino fundamental às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. A medida, embora justificada sob o manto da escassez orçamentária, escancara uma ferida antiga, aberta e pulsante: o desmonte sistemático da educação pública brasileira. Quando o Estado escolhe quais saberes merecem chegar às mãos das crianças e quais serão silenciados, ele não apenas faz uma opção pedagógica — faz uma declaração política. E essa declaração é, em essência, um projeto de contenção de pensamento, de imaginação e de cidadania.

Mas, como aceitar o discurso da “falta de recursos” quando o Congresso Nacional brasileiro — esta ilha de privilégios — aprovou para si próprio um orçamento de mais de 1 bilhão de reais, apenas em 2024, para despesas operacionais, viagens internacionais, cotões parlamentares e salários milionários? Como justificar a escassez de livros enquanto assistimos a uma fartura inquestionável nos banquetes do poder?

Antes de continuar, vale uma advertência importante: é simplista e até leviano tentar empurrar o colapso da educação pública para o colo de um único governo. A derrocada da escola pública é um processo histórico e multifacetado, que perpassa décadas de negligência, interesses privados travestidos de políticas públicas e uma constante desvalorização dos profissionais da educação. O problema é sistêmico, estrutural e intencional.

A falsa neutralidade da prioridade

A escolha de priorizar somente os livros de Matemática e Língua Portuguesa não é neutra. Na superfície, pode parecer lógica: são as disciplinas que compõem as avaliações externas do governo, como o SAEB e o IDEB. São também as matérias que aparecem com mais força nos discursos meritocráticos do desempenho escolar. Mas o que essa decisão elimina? Ciência. História. Geografia. Artes. Ensino religioso. Filosofia. Literatura. Cultura afro-brasileira. Cultura indígena. Pensamento crítico. Cidadania.

Ao suprimir esses campos do saber, o Estado está dizendo, com todas as letras, que aprender a calcular e a decodificar palavras basta. Que basta saber “ler” e “fazer conta”. Que o resto é “acessório”. Ora, esse raciocínio utilitarista reduz a educação à mera instrução técnica — ou seja, uma formação voltada apenas para a produtividade econômica, não para a formação humana.

É aqui que Paulo Freire, o educador que o Brasil marginalizou enquanto o mundo o reverenciava, nos aponta o caminho. Freire afirmava que a educação deve ser um ato de liberdade, jamais um instrumento de opressão. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, dizia ele. E, nesse contexto, privar crianças das múltiplas linguagens que a escola pode oferecer — artes, ciências, culturas, histórias — é, na prática, cortar as asas do pensamento crítico e da autonomia intelectual.

O Brasil que escolhe não saber

No Brasil, ignorância não é acidente: é método. Desde o período colonial, a educação foi negada às populações racializadas e empobrecidas como uma estratégia de dominação. O que vemos hoje é uma continuidade refinada dessa lógica. Quando se diz que não há dinheiro para livros, não é apenas uma frase orçamentária — é um posicionamento ideológico.

Aliás, é curioso como o discurso da escassez só aparece quando se trata dos pobres. Nunca faltam verbas para reajustes de militares, para auxílios-moradia de juízes que já têm casa, para viagens de deputados em classe executiva, para propagandas milionárias de governos. Nunca há corte em carros oficiais, em diárias parlamentares, em lanchinhos licitados a preços de banquete imperial. Mas para os livros… sempre falta.

Essa é a pedagogia da escassez seletiva: farta para quem governa, míngua para quem aprende.

O papel do Congresso: cúmplice ou protagonista?

É necessário aqui um momento de realismo político. O Legislativo brasileiro, que deveria ser guardião da Constituição e fiscalizador do Executivo, se tornou — salvo raras exceções — uma máquina de consumo de verbas públicas. Os mais de 500 parlamentares federais contam com uma estrutura que, se somada, consome bilhões anuais.

O “cotão” parlamentar, por exemplo, é um fundo que permite gastos com divulgação de mandato, aluguel de carros, passagens aéreas, hospedagens e outros mimos. Os gabinetes são verdadeiros feudos familiares, recheados de assessores nomeados por vínculos de sangue ou de conchavo. Em contrapartida, os professores de escola pública precisam comprar seus próprios pincéis, xerocar provas do próprio bolso, e agora — vejam só — vão ver suas crianças com acesso limitado a livros.

Enquanto o Congresso mergulha em cifras bilionárias, o MEC encolhe. E a criança da escola pública, majoritariamente preta, periférica e esquecida, recebe migalhas como se fossem dádivas. Não são.

Educação não é gasto. É fundação.

O discurso da contenção de despesas precisa ser urgentemente desmascarado. Educação não é despesa: é investimento. É a única chance de mudar a base podre sobre a qual este país se ergueu.

Paulo Freire nos ensina que ensinar exige coragem. Coragem de lutar por uma escola que liberta, não que adestra. Mas, no Brasil, essa coragem anda em falta. Os governos de turno, ao invés de enfrentarem os grandes oligopólios do mercado editorial ou os interesses de políticos que veem a escola como ameaça, preferem aplicar cortes covardes. É mais fácil calar uma criança do que encarar um sistema.

E é bom lembrar: os livros didáticos são a principal ferramenta de ensino para milhões de estudantes que não têm acesso à internet, a bibliotecas ou a qualquer recurso digital. Nas regiões mais pobres do país, eles são o único contato da criança com o conhecimento estruturado. Cortar esses livros é condenar ao silêncio gerações inteiras.

Os que resistem

Paulo Freire – Patrono da Educação no Brasil

A educação brasileira, apesar de tudo, segue viva graças a quem está na trincheira: professores, pedagogos, coordenadores, diretores, merendeiras, mães que lutam por creche, estudantes que protestam, movimentos sociais, educadores populares. São esses os heróis invisíveis que tentam manter o barco à tona em meio à tempestade.

Movimentos como o MST, por exemplo, têm experiências pedagógicas brilhantes em escolas do campo. Coletivos periféricos criam bibliotecas comunitárias, rodas de leitura, espaços de contação de histórias. Tudo isso sem um centavo do Estado. E ainda assim produzem cidadania, criticidade, e esperança. É aqui que o sonho freireano segue respirando.

As consequências do corte de saberes

Cortar o acesso ao conhecimento integral é cortar o direito ao futuro. Sem livros de História, como formar uma consciência crítica sobre o Brasil escravocrata, patriarcal e desigual? Sem Ciências, como preparar crianças para uma era de mudanças climáticas e pandemias globais? Sem Artes, como desenvolver sensibilidade, criatividade e autoestima? Sem Filosofia, como formar cidadãos éticos?

O desmonte da educação pública não é um erro de gestão. É um projeto. E esse projeto visa exatamente isso: produzir um povo domesticado, que saiba obedecer ordens, mas não questioná-las. Que saiba fazer contas, mas não entenda o que está sendo roubado. Que saiba ler, mas não compreenda o que está por trás da manchete.

Paulo Freire, mais atual que nunca

Em “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire nos alerta para a educação bancária, aquela que apenas deposita conteúdos nos alunos sem promover a reflexão. No entanto, o que vivemos hoje no Brasil nem chega a isso: vivemos a “educação da retirada”, em que nem mesmo os conteúdos básicos chegam. O banco está vazio.

Freire nos ensinou que toda educação é política. E é exatamente por isso que seu nome assusta tanta gente. Porque ele entendia que educar é empoderar. E quem tem medo de um povo educado é quem deseja continuar no topo da pirâmide da desigualdade.

Quando se diz que “não há verba para livros”, o que se está dizendo é: “não queremos empoderar essas crianças”. Queremos que elas saibam o mínimo para servir, não o suficiente para transformar.

O país que queima livros antes mesmo de imprimi-los.

A decisão do MEC é um sintoma de uma doença maior: o desprezo pela formação crítica e integral da população. Não se trata apenas de economia. Trata-se de escolhas. Escolhas que revelam quais futuros queremos alimentar — e quais queremos amputar.

Dizem que o Brasil é o país do futuro. Mas com essa política de cortes e abandono, o futuro continuará sendo um luxo de poucos. Um país que economiza em livros, mas esbanja em gabinetes, não é apenas um país desorganizado — é um país cínico.

E, como dizia Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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