Nos últimos meses, a imagem de Ibraim Traoré, jovem capitão e atual presidente de Burkina Faso, tem atravessado fronteiras com a velocidade de um trovão africano em céu colonial. Ele não representa apenas um golpe de Estado — representa um colapso sísmico na lógica imperial. Seu rosto, seus discursos inflamados e suas ações contra a hegemonia francesa têm reacendido não só o orgulho nacional burquinês, mas também a centelha da desobediência preta global.
Mas vamos além do retrato simplista de um “novo líder radical”. Traoré não está apenas no poder — ele está encarnando um arquétipo ancestral: o do guerreiro soberano que se recusa a ajoelhar. Inspirado nos ventos libertários de Che Guevara, ele não faz discursos: lança projéteis verbais contra os escombros ainda fumegantes da colonização. E diferente dos líderes domesticados pelo sistema, ele não oferece conforto ao status quo — oferece confronto.
Ao seu lado, em outro ponto do continente, Julius Malema, líder do EFF na África do Sul, também desrespeita a liturgia do poder branco. Em pleno Parlamento, declarou apoio irrestrito à luta do povo palestino, unindo as dores da África ao grito sufocado do Oriente Médio. Não pediu permissão. Não suavizou o tom. Apontou com precisão cirúrgica para o centro necrótico do projeto ocidental — esse mesmo projeto que financia genocídios enquanto vende discursos sobre democracia.
Essa sinergia entre Traoré e Malema não é acidental. Ela reabre a trilha esculpida a ferro e sangue por Thomas Sankara, outro revolucionário burquinês que ousou rasgar os contratos invisíveis que mantêm o Sul Global submisso. Sankara era, acima de tudo, um educador radical: ensinou seu povo a se olhar no espelho sem vergonha, a cultivar sua terra com orgulho, a rejeitar esmolas disfarçadas de empréstimos. Pagou com a vida. E seu assassinato silencioso pavimentou décadas de apagamento.
Mas o silêncio está acabando.
Vivemos um novo ciclo histórico — onde as estruturas da obediência estão trincando, e as velhas certezas imperiais não conseguem mais conter o transbordamento da consciência preta planetária. A mídia — essa máquina de distorção que Malcolm X já havia denunciado como a arma mais perigosa do planeta — ainda tenta editar a realidade. Mas hoje, a tecnologia e a indignação sincronizada dos povos criaram uma fissura na muralha da narrativa oficial.
Traoré não está sozinho. Ele é fruto de um solo que está germinando em várias partes do mundo. Um solo regado pela memória, pelo trauma, pela luta e pela sabedoria ancestral de milhões de africanos que foram enterrados como escravos e estão ressuscitando como estrategistas, pensadores, artistas e líderes.
No Brasil, território pulsante da diáspora africana, esse chamado não pode ser ignorado. O mesmo sistema que aprisiona palestinos em Gaza e congoleses em minas de cobalto é o que aprisiona corpos pretos nas periferias de São Paulo, do Rio, de Salvador. É o mesmo sistema que decide quais saberes merecem estar nos livros escolares e quais vozes devem ser caladas no algoritmo.
Precisamos nomear a realidade com coragem: a escravidão não foi abolida — ela apenas se travestiu de modernidade. Ela agora se apresenta como “norma bancária”, como “meta de produtividade”, como “cultura empresarial”. Está nos boletins escolares que celebram obediência. Está nos noticiários que criminalizam a pobreza. Está nos púlpitos que vendem salvação em parcelas e nos feeds que estendem o colonialismo em pixels.
Mas há uma resposta em curso: a desobediência estratégica preta.
Essa desobediência não é desorganizada, nem movida apenas pelo ódio. É uma insurgência orquestrada por inteligência. É o reencontro com aquilo que o sistema tentou esmagar: a capacidade preta de imaginar o futuro a partir de nós mesmos — sem pedir autorização, sem seguir script, sem buscar validação dos opressores.
É hora de reaprender o idioma da libertação. É hora de entender que cada gesto de coragem, cada ocupação de espaço, cada palavra que resgata a memória dos nossos — de Zumbi a Malcolm, de Nzinga a Angela Davis — é parte de um levante maior. Não se trata de voltar ao passado, mas de honrar os códigos que nos foram deixados para atravessar o presente e invadir o porvir.
O que Ibraim Traoré representa não é apenas uma revolução política. É uma recalibração do imaginário coletivo preto. É a recusa em ser gerenciado, monitorado, corrigido, adaptado, traduzido. É o retorno ao estado bruto da dignidade — aquele que não pode ser mediado por acordos, tratados ou “boas intenções” diplomáticas.
E essa revolução não precisa de uniforme, nem de farda, nem de partidos. Precisa de lucidez, de coragem e de memória vibrante.
Como disse Mandela: “Nossa liberdade estará incompleta enquanto o povo palestino não for livre.”
É sobre interconexão. É sobre descolonizar também o afeto, o consumo, a política, a fé e o modo como sonhamos. O tempo da obediência servil acabou. Agora, só faz sentido seguir em direção àquilo que nos devolve inteiros.
Acorde. O chamado já começou. E ele fala a sua língua.