O Brasil adora criar caricaturas de inimigos. Para a elite, para os jornais que sempre pertenceram a poucas famílias e para a classe média que repete os discursos prontos, o “bandido” mora na favela, tem rosto negro, está de chinelo, sem camisa, portando um fuzil. É esse corpo que circula nas telas de TV e que serve de justificativa para a morte em massa nas periferias. Mas será que são apenas esses os criminosos que assombram o país? Quem são, afinal, os verdadeiros traficantes de Cristo?
A expressão incomoda porque toca no nervo exposto da contradição brasileira: a mistura de fé, poder e crime. Não falo apenas dos traficantes que queimam terreiros, impõem a Bíblia como lei paralela nas comunidades e executam lideranças religiosas de matriz africana. Esses, sim, são traficantes de Cristo em sua forma mais explícita — bandidos armados que usam o nome de Deus como moeda de autoridade e terror. Mas eles não estão sozinhos. O fenômeno é mais amplo, mais sofisticado, e se infiltra em esferas que a sociedade prefere chamar de “respeitáveis”.
O Cristo das Milícias
As milícias que controlam territórios no Rio de Janeiro e em outros estados vendem segurança, cobram pedágio e exploram serviços básicos como gás e internet. Tudo isso com uma Bíblia aberta no balcão. Reuniões de oração, discursos moralistas e pregações servem de verniz para grupos armados que ditam quem pode viver, quem pode vender, quem pode amar. Esse Cristo armado não salva: patrulha e executa. O Cristo das milícias é um Cristo sequestrado, usado como marca de poder.
O Cristo das Cúpulas
Mas limitar os traficantes de Cristo às vielas é uma ingenuidade — e, em certo sentido, até uma desonestidade intelectual. Há também o Cristo das cúpulas, dos templos empresariais erguidos como verdadeiras holdings da fé. Pastores-milionários, donos de emissoras de TV e partidos políticos, que acumulam jatinhos, mansões e isenção de impostos em nome de Cristo. Pregam obediência aos pobres e blindagem para os ricos. Pregam sacrifício para o povo e abundância para si. Eles não apenas traficam Cristo: transformaram-no em produto de consumo, em espetáculo televisivo, em voto de cabresto.
Quem são mais perigosos? Os jovens de 20 anos com fuzis na mão ou os líderes religiosos que sentam à mesa do poder, negociam ministérios e decidem rumos de nações inteiras com base em dogmas? Esses homens — e suas empresas da fé — são os traficantes de Cristo de gravata e terno, respeitados e bajulados, mas que agem como bandidos de Deus.
O Cristo do Estado
E há ainda o Cristo do Estado. Políticos que juram pela Bíblia, governadores que citam versículos para justificar chacinas, deputados que pedem mais armas em nome de “Deus e da família”. Esse Cristo de palanque legitima a violência oficial. Ele não distribui pão: distribui bala. Não cura: extermina. É usado como escudo moral para políticas que aprofundam desigualdade, que criminalizam a pobreza e que perpetuam o racismo estrutural.
Quando Tarcísio, Bolsonaro e tantos outros brandem a Bíblia em frente às câmeras, não estão evangelizando. Estão traficando símbolos. Estão utilizando Cristo como arma retórica para manter o Brasil no século XIX, entre senzalas atualizadas e privilégios hereditários.
O racismo como motor
É impossível separar os traficantes de Cristo da engrenagem do racismo. É o racismo que define quem será alvo da polícia, quem será exibido como “bandido” no noticiário, quem terá sua casa invadida sem mandado. É o racismo que precisa da favela como território de contenção, do desemprego como horizonte, da falta de escola como destino. Essa desigualdade programada produz o “produto” que o tráfico e a milícia exploram. Mas, ao mesmo tempo, alimenta o teatro político em que elites se apresentam como guardiãs da ordem cristã.
O racismo fabrica o inimigo conveniente — o jovem negro, pobre, periférico — enquanto protege os verdadeiros traficantes de Cristo: banqueiros da fé, milicianos engravatados, políticos armados de Bíblia e empresários que se apresentam como devotos, mas sustentam seus impérios com exploração e mentira.
Bandidos de Deus
Os bandidos de Deus não estão apenas nas vielas. Estão nos templos luxuosos que funcionam como centros de lavagem de dinheiro. Estão nos palácios do poder, onde o nome de Cristo é usado como senha para cargos e verbas. Estão nas telas de televisão, onde apresentadores gritam por justiça ao mesmo tempo que defendem chacinas e criminalizam a pobreza.
Reduzir o debate ao “traficante da favela” é cair na armadilha que sustenta o Brasil há séculos: a de culpar o povo por crimes que nascem no topo. Sim, há crimes nas periferias — seria insensato negar. Mas é preciso reconhecer que os crimes mais graves, aqueles que moldam o destino de milhões, não estão no beco escuro, e sim nos gabinetes claros e refrigerados.
Chamar esses personagens de traficantes de Cristo é desmascarar a farsa. É mostrar que Cristo virou moeda: usado por milicianos para impor medo, por pastores para acumular fortunas, por políticos para legitimar violência, por empresários para lavar reputações.
A pergunta que fica não é apenas “quem são os traficantes de Cristo?”, mas “quem ganha com o Cristo sequestrado?”. A resposta, dolorosa, aponta sempre para cima da pirâmide. Enquanto a favela sangra, os verdadeiros bandidos de Deus contam votos, acumulam dízimos e fecham negócios.
O desafio é não cair na narrativa confortável que culpa apenas os de baixo. O problema central do Brasil não é a favela: é a estrutura racista, desigual e hipócrita que precisa de traficantes de Cristo em todas as camadas para se manter de pé.