Há algo de fascinante quando mencionamos o nome Kemet. Para muitos, soa apenas como mais uma palavra estrangeira, talvez um eco distante de um Egito antigo congelado em museus e livros escolares. Mas para outros — e aqui me incluo — Kemet não é apenas o Egito. É um símbolo de origem, um arquétipo de civilização, um sopro de memória que nos lembra que a humanidade começou a escrever sua própria história não em palácios europeus ou universidades modernas, mas nas margens férteis do Nilo, onde a vida floresceu sob o sol africano.
E por que ainda falamos tanto de Kemet? Porque o Egito antigo não é apenas uma paisagem de pirâmides. É um pilar civilizatório que estruturou ciência, filosofia, espiritualidade e estética. É a fonte de uma sabedoria que, mesmo milênios depois, continua a nos interpelar.
A cosmovisão de Ma’at
Um dos conceitos mais poderosos legados por Kemet é a filosofia de Ma’at. Mais que uma deusa, Ma’at representava um princípio cósmico: verdade, ordem, harmonia e justiça. Era a medida de todas as coisas, a régua pela qual se equilibrava o universo e a vida social. Diferente das concepções posteriores que colocaram a divindade distante, Kemet nos ensinou que a ordem cósmica e a ética cotidiana eram indissociáveis.
Ser humano, naquela perspectiva, era viver alinhado a Ma’at: falar a verdade, agir com justiça, não oprimir o próximo, equilibrar o coração. Foi essa filosofia que moldou as primeiras noções de direito, de responsabilidade coletiva e de moralidade.
Kemet e o nascimento da ciência
Quando falamos de matemática, é comum pensarmos em gregos como Pitágoras. Mas muito antes deles, as margens do Nilo já haviam produzido engenheiros capazes de calcular áreas, volumes, alinhar construções com precisão astronômica. O que hoje chamamos de “geometria” nasceu como a necessidade de medir a terra (geo-metria) depois das cheias do rio.
A medicina, igualmente, encontrou em Kemet seu berço. Papiros como o de Ebers e Edwin Smith registram diagnósticos, tratamentos e cirurgias que surpreendem médicos ainda hoje. O nome de Imhotep — arquiteto, cientista, filósofo e médico — ecoa como o de um dos primeiros grandes sábios da humanidade. Muito antes de Hipócrates, Imhotep já havia sistematizado práticas médicas, deixando como legado a ideia de que saúde é equilíbrio, e não apenas ausência de doença.
Filosofia, alquimia e o “saber secreto”
A filosofia também tem origem e raízes profundas em Kemet. A sabedoria(muito antes de Platão) de Ptahhotep são considerados um dos primeiros tratados filosóficos do mundo. Ali estão conselhos éticos, reflexões sobre poder, humildade e justiça que ainda soam atuais.
A alquimia, por sua vez, carrega no próprio nome a marca de Kemet: al-khemia, a ciência da terra negra. Não se tratava apenas de transformar metais, mas de compreender as transformações da própria existência. Essa tradição, mais tarde absorvida e reinterpretada pelos árabes e europeus, nasceu no contexto africano como um estudo espiritual e científico ao mesmo tempo.
Yoga africana e o corpo como templo
Pouco se fala, mas o que hoje chamamos de yoga também tem origem em África. Práticas de posturas, respiração e meditação estão registradas em murais de Kemet. Os movimentos, conhecidos como Sema Tawi, buscavam unir o corpo e o espírito, equilibrar a energia vital e alinhar-se à ordem cósmica.
Assim, muito antes da globalização transformar a yoga em produto de academia, ela já era um caminho de autoconhecimento em África. Essa herança mostra que a busca pela consciência não é privilégio de uma cultura, mas um patrimônio ancestral que atravessa continentes.
Kemet como espelho para hoje
Mas se tudo isso está tão distante no tempo, por que ainda falamos tanto de Kemet? Porque há feridas abertas. A modernidade europeia construiu-se muitas vezes sobre a negação dessa herança africana. Livros, filmes e até salas de aula insistiram em embranquecer faraós, silenciar filósofos africanos e transformar a grandiosidade do Nilo em mito turístico.
Falar de Kemet é resistir. É lembrar que África não é apenas escravidão, mas origem. Não é atraso, mas ciência. Não é silêncio, mas filosofia. E quando nos reconectamos com essa narrativa, abrimos espaço para repensar o próprio lugar do Brasil e da diáspora africana no mundo.
IZA, o palco e a retomada da memória
Foi nesse espírito que a cantora Iza subiu ao palco do The Town em São Paulo e transformou sua apresentação em uma aula viva de ancestralidade. Em um show vibrante, ela trouxe símbolos de Kemet, evocou imagens da realeza africana e colocou diante de milhares de pessoas a certeza de que essa história não é distante, mas presente.
Quando uma artista preta da diáspora africana no Brasil ocupa o centro do palco trazendo Kemet como referência estética e espiritual, ela não está apenas cantando. Está abrindo portais de memória. Está lembrando que somos descendentes de inventores, arquitetos, filósofos e reis. Que nossa identidade não pode ser reduzida ao trauma da escravidão.
Iza mostrou, naquele momento, que falar de Kemet é também um ato político. É reivindicar uma história que nos foi negada, ressignificar símbolos e plantar novas sementes de autoestima coletiva.
O Egito que não cabe em museus
Pirâmides, esfinges, templos: o Egito ainda deslumbra turistas e inspira artistas. Mas se ficarmos apenas na paisagem, perderemos o essencial. Kemet não cabe em museus. Ele continua vivo em cada luta pela valorização da cultura africana, em cada vez que resgatamos o nome de Imhotep ou a filosofia de Ptahhotep, em cada vez que uma artista como Isa inscreve a ancestralidade em sua performance.
O Egito antigo não é passado. É fundação. E toda fundação, se esquecida, compromete o edifício do presente.