Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem

O pensamento aparentemente radical do poeta talvez nos assuste por sua objetividade. Saber ler e não fazê-lo é pecado passível de dura punição: é estar alienado do mundo, tal qual o analfabeto que, limitado por seu desconhecimento de letras, palavras e contextos, não consegue inteirar-se por completo no mundo que o cerca, por lhe faltar uma visão letrada. Quando se fala tanto do prazer da leitura e que ler é viajar ao encontro de mundos de fantasia e plena felicidade, causa-nos estranheza o fato de haver os que aprenderam a ler e não leem. Uma vez conquistado pelo poder encantatório das letras, é possível retroceder e abandonar o prazer da atividade de leitura, ocultando-se no silencioso mundo da não-leitura? Em caso afirmativo, que motivos estariam envolvidos nesta ação?

No Brasil, a baixa taxa de leitura reflete mais do que uma simples falta de hábito: ela é sintoma de um problema estrutural. Historicamente, a elite brasileira construiu e perpetuou um modelo social em que a ignorância da maioria é funcional e lucrativa. Investir em educação e incentivar a leitura significaria empoderar uma população capaz de questionar, pensar criticamente e transformar a realidade. No entanto, manter a população sem acesso pleno à cultura escrita é uma estratégia que favorece a concentração de poder e a manutenção de privilégios.

Como consequência, o Brasil se destaca negativamente na América do Sul em relação aos índices de leitura:

•Baixo índice de leitura entre estudantes: O Brasil tem o menor número de estudantes que leem mais de 100 páginas por ano, refletindo falhas no sistema educacional, onde a leitura muitas vezes não é apresentada como uma prática prazerosa e transformadora.

Em 2023, mais de 80% da população brasileira não comprou ou leu sequer um livro, e em 2024, esse índice permaneceu alarmante, com mais de 60% dos brasileiros não tendo completado a leitura de um único livro. Esses números reforçam a gravidade da crise cultural e educacional do país, evidenciando a falta de incentivo e acesso à leitura, que é fundamental para o desenvolvimento intelectual e social.

Essas informações são de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro (IPL)

•Desinteresse generalizado: Segundo uma pesquisa da Câmara Brasileira do Livro (CBL), mais da metade da população brasileira não lê livros, demonstrando o impacto de um sistema educacional e cultural que não incentiva o gosto pela leitura.

•Ausência de leituras completas: Uma pesquisa da revista VEJA aponta que 73% dos brasileiros não completaram a leitura de sequer um livro nos últimos 12 meses, revelando a desconexão entre as pessoas e o universo literário.

•Desempenho internacional preocupante: O Brasil ocupa a 52ª posição no ranking global de leitura, muito atrás de países que priorizam o acesso à educação e à cultura como pilares do desenvolvimento.

A leitura é um dos caminhos mais poderosos para a emancipação social, mas, no Brasil, ela ainda é tratada como um privilégio de poucos. Bibliotecas públicas insuficientes, preços elevados de livros e uma educação deficitária são apenas alguns dos obstáculos que impedem milhões de brasileiros de acessar o mundo das letras. Romper com essa realidade não é apenas um desafio cultural, mas um ato político que demanda coragem para confrontar estruturas que lucram com a ignorância. Afinal, um país que lê é um país que pensa — e isso é tudo o que uma elite antidemocrática teme

A crítica de Mário Quintana parece tocar em um ponto central da contemporaneidade: a escolha deliberada pela não-leitura em uma sociedade hiperconectada, onde o acesso ao conhecimento está, em teoria, mais democratizado do que nunca. Não se trata apenas de um problema de preguiça ou desinteresse, mas de algo mais profundo e estrutural. Vivemos em tempos de sobrecarga de informações e estímulos, onde a atenção está fragmentada entre redes sociais, entretenimento audiovisual e demandas cotidianas. Nesse contexto, a leitura – um ato que exige silêncio, concentração e tempo – perde espaço para atividades mais rápidas, imediatas e, muitas vezes, menos reflexivas.

Além disso, o mercado editorial e a própria educação formal podem contribuir para a construção dessa alienação. A leitura, que deveria ser apresentada como um prazer, muitas vezes é reduzida a uma obrigação. Livros são encarados como instrumentos de avaliação escolar ou como símbolos de status intelectual, perdendo seu caráter de convite ao encontro com novos mundos e perspectivas. Para muitos, ler deixa de ser uma aventura e passa a ser uma tarefa penosa, quase uma imposição.

Há também um fator cultural a ser considerado. Em sociedades onde a busca pelo sucesso material e pela produtividade extrema é exaltada, o tempo dedicado à leitura é frequentemente visto como improdutivo ou inútil. A frase “não tenho tempo para ler” tornou-se um mantra de quem se sente esmagado pelas exigências da vida moderna, mas que, ironicamente, pode passar horas preso ao consumo de conteúdos efêmeros em redes sociais.

Mas a questão vai além da simples falta de tempo ou de prioridade. Muitos aprendem a decifrar letras e palavras, mas nunca experimentam o verdadeiro poder da leitura: sua capacidade de transformar, questionar e expandir horizontes. Sem esse encantamento inicial, a leitura perde sua magia, e o hábito não se estabelece. Assim, saber ler, no sentido técnico, não é suficiente. É necessário um encontro com a leitura que vá além do funcional, que seja apaixonante e libertador.

Dessa forma, o pensamento de Quintana nos provoca a refletir sobre a responsabilidade social e individual em relação à leitura. A quem cabe o papel de despertar nos leitores essa paixão? A educação? A família? A própria literatura? E o que podemos fazer para resgatar aqueles que, mesmo sabendo ler, abandonaram esse universo de possibilidades?

A alienação dos que não leem é, portanto, uma perda não só individual, mas coletiva. Uma sociedade que não valoriza a leitura é uma sociedade que perde sua capacidade de imaginar, de dialogar, de compreender o outro. Ler não é apenas um ato de lazer ou uma habilidade prática: é uma forma de resistência, de autonomia, de conexão. Talvez a punição mencionada por Quintana não seja externa, mas interna – a perda do prazer, da empatia, da profundidade. Afinal, o verdadeiro analfabeto é aquele que, tendo a chave para abrir o mundo, escolhe mantê-lo trancado.

Muito Obrigado por ter lido!
Tmj👊🏿🔥

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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