O Santo é branco e o diabo é preto

No país que se autodenomina cristão, somos confrontados com uma realidade dolorosa e incongruente. Enquanto o discurso de fé e amor ao próximo é propagado, a verdade oculta é que esse mesmo país testemunha a perseguição e a morte implacável de pessoas que seguem religiões de matriz africana.

É como se a hipocrisia se disfarçasse de devoção, enquanto as vozes das vítimas ecoam em silêncio. Maria Bernadete Pacífico Moreira, uma mulher negra de vida marcada pela dificuldade, personificou a resistência ao enfrentar as adversidades como líder quilombola da comunidade Pitanga dos Palmares e como voz incansável na Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos.

Porém, essa voz foi silenciada de forma brutal, em uma noite que ficará gravada na memória de todos que lutam por justiça e igualdade. Aos 72 anos, Mãe Bernadete foi executada a tiros em sua própria casa. Uma tragédia que nos obriga a olhar de frente para a face mais sombria de nossa nação.

Mãe Bernadete foi mais do que uma líder, mais do que uma ativista – ela personificou a resistência e a esperança, enfrentando a intolerância religiosa que persiste em nosso país. Em um Brasil estruturado pelo racismo, a mera expressão ‘intolerância religiosa’ não consegue abarcar a complexidade das violências sofridas pelas pessoas que adoram os orixás e abraçam suas raízes africanas.

Nossos irmãos e irmãs, os povos de terreiro, enfrentam um inimigo que transcende a intolerância e se arraiga profundamente no racismo religioso. É um racismo que busca silenciar, marginalizar e até mesmo eliminar aqueles que ousam ser fiéis às suas tradições ancestrais.

É hora de reconhecermos a verdade desconfortável: o país que professamos como cristão, com sua história entrelaçada com a fé, também abriga um lado obscuro que mancha essa reputação. Enquanto clamamos por justiça e igualdade, devemos nos unir em uma voz uníssona contra o racismo religioso que tira vidas, sonhos e esperanças.

A memória de Mãe Bernadete e de todos aqueles que foram vítimas desse racismo religioso cruel não pode ser esquecida. Precisamos transformar nossa indignação em ação, nossas lágrimas em movimento. Somente ao enfrentarmos essa realidade de frente e juntos poderemos vislumbrar um futuro onde a liberdade de crença e a dignidade de todas as religiões sejam respeitadas.

Não podemos permanecer em silêncio enquanto o país que carrega a cruz também carrega o fardo de uma história manchada pela intolerância e pelo racismo religioso. É hora de virar a página e escrever um novo capítulo, onde a diversidade espiritual e cultural seja celebrada e protegida para as gerações futuras.

Do passado aos dias atuais, a história do Brasil se desenha com tons de intolerância e violência contra líderes e seguidores das religiões de matriz africana. A cronologia sinistra desvenda um padrão triste e revoltante.

No século XVII, o líder quilombola Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência contra a opressão colonial, enfrentou uma batalha incansável pela liberdade. No entanto, sua luta culminou em sua morte, um episódio que antecipou uma série de tragédias.

Avançando para o século XX, em 1914, Tia Ciata, importante figura no candomblé, também foi vítima de perseguição, uma evidência de que mesmo o coração do Rio de Janeiro não estava imune à intolerância. Muitos outros líderes foram silenciados ao longo das décadas, sob o manto do racismo religioso.

Na década de 1970, Mãe Menininha do Gantois, guardiã do candomblé baiano, enfrentou o fardo da perseguição, apesar de sua influência positiva. Anos depois, Mestre Didi, grande representante da cultura afro-brasileira, também teve sua voz sufocada.

A escalada de violência contra líderes de matriz africana não cedeu nos anos seguintes. Em 2008, Mãe Gilda, do Ilê Axé Abassá de Ogum, foi vítima de uma campanha de ódio que resultou em sua morte. E em 2014, o Babalorixá Betinho de Odé foi brutalmente assassinado em São Paulo.

Chegando ao presente, as estatísticas continuam a registrar assassinatos cruéis. Em 2021, Mestre Moa do Katendê, capoeirista e defensor da cultura afro-brasileira, foi esfaqueado após uma discussão política, ressaltando a persistência da intolerância.

O amor venceu? Onde?

Wanderson Dutch.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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