Militares são julgados pela primeira vez na história.

O Brasil vive um momento inédito. Pela primeira vez, militares de alta patente começam a ser julgados por sua participação em tramas golpistas contra a democracia. O fato, em si, é histórico: um país marcado por quarteladas, golpes e autoritarismos finalmente se vê diante da possibilidade de responsabilizar aqueles que, por décadas, se acostumaram à impunidade. Mas ao mesmo tempo em que o gesto representa avanço, revela também um atraso brutal: por que demoramos tanto?

A longa sombra da ditadura

Entre 1964 e 1985, o Brasil foi governado por generais que implantaram uma ditadura cívico-militar. Houve cassações, prisões arbitrárias, censura, tortura sistemática e desaparecimentos forçados. A máquina de repressão contou com a participação direta de militares das Forças Armadas e de polícias que operavam como braços da violência de Estado.

Ao final da ditadura, o país optou pela conciliação. A Lei da Anistia de 1979, interpretada de forma conveniente, perdoou tanto opositores perseguidos quanto agentes da repressão. Resultado: nenhum torturador, nenhum mandante de assassinatos políticos, nenhum militar de alta patente foi julgado ou condenado. Enquanto vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai abriram processos e prenderam ditadores, o Brasil preferiu varrer os crimes para baixo do tapete da história.

Esse pacto de silêncio moldou a democracia brasileira. E aqui está o nó: uma democracia construída sobre a impunidade é sempre uma democracia frágil.

O peso da impunidade

A ausência de responsabilização alimentou uma cultura perigosa dentro dos quartéis. Muitos militares nunca se sentiram subordinados à ordem civil. Ao contrário: conservaram a ideia de que eram eles os “guardiões da pátria”, acima de partidos, acima de instituições, acima da própria Constituição.

Esse espírito atravessou gerações. Quando Bolsonaro surgiu como liderança política, sua retórica saudosa da ditadura encontrou eco em corporações militares que jamais foram obrigadas a confrontar seus crimes passados. Não surpreende, portanto, que generais tenham se sentado ao redor da mesa do poder, não como coadjuvantes, mas como protagonistas de um governo que flertou abertamente com o golpismo.

Se hoje se fala em “primeiro julgamento de militares”, isso não revela avanço apenas: denuncia o atraso de quase quatro décadas em responsabilizar os fardados pelo que fizeram e pelo que ainda fazem.

Do golpe de 64 à tentativa de 2022

O fio da história é mais direto do que parece. Em 1964, os militares tomaram o poder com apoio de parte da elite civil, do empresariado e da mídia, alegando combater o “perigo comunista”. Em 2022, a retórica foi quase a mesma: uma suposta ameaça à liberdade, às urnas eletrônicas, ao “Brasil cristão”.

Na essência, a trama golpista liderada por Bolsonaro e seus generais não difere tanto do passado: é a repetição de uma lógica onde as Forças Armadas se arrogam o direito de decidir o destino da nação. A diferença é que, agora, os militares estão sendo chamados a prestar contas.

O julgamento atual pode, portanto, ser lido como um divisor de águas. Mas não sem ressalvas: o Brasil chega a esse ponto tarde demais, depois de permitir que a impunidade alimentasse novas aventuras autoritárias.

A Justiça que tarda e falha

Há uma ironia cruel nesse processo. Ao julgar militares pela primeira vez, o STF e demais instituições tentam corrigir um erro histórico, mas fazem isso em meio a uma sensação de urgência, como se o país tivesse acordado de repente para um problema que sempre esteve na superfície.

Essa lentidão não é acidental. A própria transição da ditadura para a democracia foi feita sob o signo da lentidão, da conciliação e do medo de “abrir feridas”. Essa narrativa, repetida à exaustão, serviu apenas para proteger os algozes. Quantas mães ainda hoje procuram os corpos de filhos desaparecidos nos porões da ditadura? Quantas famílias foram destruídas sem jamais ver a Justiça?

E agora, quantos brasileiros assistiram, perplexos, a generais fardados conspirando contra a eleição de Lula, sem que o Estado tivesse mecanismos rápidos para coibi-los? O atraso da Justiça não é neutro. É sempre funcional a alguém.

Os militares e o mito da tutela

Ao longo da história, as Forças Armadas cultivaram o mito da tutela: a ideia de que seriam responsáveis por intervir sempre que a “nação” estivesse em perigo. É um mito conveniente, que transforma quartéis em reservas morais e políticos de farda em árbitros supostamente imparciais.

Só que essa tutela sempre custou caro. Custou sangue, custou democracia, custou vidas. O julgamento atual precisa ser entendido nesse contexto: não se trata apenas de punir crimes específicos, mas de romper com uma lógica de tutela que atravessa séculos.

Comparações incômodas

A comparação com países vizinhos é inevitável. A Argentina julgou e condenou Jorge Videla e outros ditadores. O Chile levou Augusto Pinochet a tribunais internacionais. O Uruguai puniu militares envolvidos em torturas. No Brasil? Nada. Os generais que comandaram sessões de pau-de-arara morreram em paz, com pensões generosas, tratados como heróis por setores reacionários.

Essa diferença explica muito. Enquanto países vizinhos conseguiram construir um pacto democrático mais sólido, o Brasil segue refém do fantasma militar. Ainda hoje, qualquer discussão sobre orçamento ou reforma nas Forças Armadas é feita com luvas de seda, como se o poder civil devesse pedir licença para governar.

Um julgamento simbólico, mas insuficiente

É evidente que o julgamento de militares envolvidos na trama golpista de 2022 tem peso simbólico. Mas seria um erro achar que isso basta. A verdadeira justiça só será feita quando houver revisão da Lei da Anistia, quando torturadores forem nomeados como tais, quando a história deixar de ser contada a partir da perspectiva dos quartéis.

Não se trata de vingança. Trata-se de memória, verdade e justiça. Sem isso, qualquer democracia fica vulnerável.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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