Héteros que transam com homens héteros: a nova fronteira da sexualidade masculina.

Parece título de meme ou piada do Twitter, mas é bem mais real (e antigo) do que muita gente imagina. O fenômeno dos homens que se dizem heterossexuais mas se envolvem em experiências s€xuais com outros homens não é só papo de internet — tem nome, estudos, relatos e, principalmente, um monte de história que circula nos bastidores do Brasil machista. Hoje chamam isso de heteroflexibilidade, um termo que tenta dar ares sofisticados para algo que, no fundo, expõe o quanto a masculinidade por aqui é frágil, insegura e cercada de regras hipócritas.

O Brasil tem esse paradoxo: vende a imagem do país liberal, da bunda de fora no carnaval, da pegação na praia, do motel 24h em cada esquina. Mas basta arranhar a superfície pra descobrir o moralismo doentio que manda em tudo. O homem brasileiro é, desde cedo, bombardeado com o script do “tem que ser macho”. Não pode ter medo, não pode demonstrar afeto demais, tem que transar com o maior número de mulheres possível pra provar sua virilidade. E se, por acaso, o desejo apontar pra outro homem, é hora do pânico: ou recalca, ou inventa um discurso pra não manchar o crachá de hétero.

É aí que a heteroflexibilidade entra em cena como a “saída honrosa”. O cara vive experiências s€xuais com outros homens — muitas vezes no contexto de um ménage com uma mulher, o tal fetiche silencioso que habita mais cabeças do que se imagina — mas faz questão de reforçar que “é hétero sim, só foi uma brincadeira, coisa de momento”. Pra ele, não muda nada. Continua o mesmo machão de sempre, só que com um pequeno detalhe a mais no histórico de aventuras. Então, é tipo comer feijoada com linguiça e dizer que continua vegetariano, né? Tá bom, sei.

Esse comportamento escancara uma sociedade que nunca soube lidar direito com o próprio desejo. O Brasil lidera rankings de consumo de pornografia “diferente”, enquanto encabeça as estatísticas de violência contra pessoas LGBTQIA+. O país faz piada com travestis na TV e depois é o mesmo que mais consome conteúdo com travestis em sites adultos. O homem brasileiro é, ao mesmo tempo, consumidor voraz do que ele mesmo diz repudiar. O resultado é esse baile de máscaras onde ninguém pode ser quem é de fato.

Quando se trata do heteroflex, a justificativa mais comum é algo como: “não me apaixonei, então não tem nada a ver com minha s€xualid4de”. Como se a atração física, o tesão, o toque, o prazer não fossem parte central do campo do desejo. É o famoso “foi só s€xo”, dito com um ar quase científico, pra não dar margem pra confusão. Amor é pra mulher, homem é só descarga física. E tá tudo bem. Ou melhor, tá tudo bem desde que ninguém chame isso pelo nome que o mundo convencionou: bissexualidade.

Porque aí é que o bicho pega. Admitir que sente tesão por outros homens, mesmo que em circunstâncias específicas, mesmo que só em trio com uma mulher, significaria abrir mão do pedestal frágil que o machismo construiu. Seria dar brecha pras piadas no trabalho, pros olhares de canto de olho na roda de amigos, pras perguntas invasivas nos encontros de família. Melhor então inventar termos novos, ou fingir que não significa nada.

Só que significa. Porque o prazer vivido no escondido, mas negado na luz do dia, reforça toda a cadeia de preconceitos que continua matando quem não tem o privilégio do sigilo. O heteroflex vive o tesão homoerótico, mas não carrega bandeira nenhuma. Não toma pancada da sociedade, não perde emprego, não é alvo de piada, porque tem o álibi perfeito: foi só uma experiência isolada, não diz nada sobre ele. Enquanto isso, o gay assumido e o bissexual visível continuam pagando o preço do preconceito em dobro.

Essa postura alimenta a masculinidade tóxica que vive de manter o poder pela humilhação do outro. O mesmo cara que transa com um amigo na madrugada é quem ri do primo afeminado, é quem faz piada com o colega que “tem jeito”, é quem bate palma pra político que diz que “família é homem e mulher”. No fundo, usa o silêncio como armadura: desde que ninguém saiba, tá tudo bem. Desde que continue no sigilo, tá garantido.

O mais curioso é que esse fenômeno não é novo. Antes mesmo dos rótulos modernos, antes de Karl Maria Kertbeny cunhar o termo “homossexualidade” lá em 1869, as pessoas já exploravam o desejo sem ficar tão preocupadas em se definir. Em várias culturas africanas, asiáticas e indígenas, havia práticas rituais, afetivas e s€xuais entre homens que não eram vistas como um problema — pelo contrário, eram parte da vida, do crescimento, da espiritualidade até. Mas veio o Ocidente cristão, trouxe a moral puritana, inventou o pecado, e o que era natural virou tabu.

Hoje, isso volta travestido de “novidade”, mas não tem nada de moderno. O que tem é só o medo ainda comandando tudo. O homem brasileiro morre de medo de sair do script porque sabe o quanto esse script é violento. O pedestal do “machão” é alto, mas feito de vidro fino. Basta admitir um tesão fora da linha e ele despenca. Então, é melhor seguir dizendo: “sou hétero, só gosto de umas aventuras diferentes às vezes”. Tá bom, sei.

E não é só uma questão pessoal. Esse ciclo reforça estruturas sociais. Enquanto o heteroflex se protege no silêncio, quem se assume sem máscara segue levando pedrada. Porque a sociedade não enxerga nuances: ela precisa que tudo esteja claramente rotulado pra saber quem vai respeitar e quem vai perseguir. O heteroflex se beneficia dessa brecha. Pode viver o prazer sem carregar o peso. Pode explorar o corpo do outro sem pagar o custo social. Isso não é liberdade. É privilégio puro.

Talvez um dia o Brasil chegue num estágio em que cada um possa falar abertamente do que sente, sem medo, sem precisar inventar rótulos pra caber no machismo. Talvez as pessoas consigam só dizer: “sinto desejo”, “tenho curiosidade”, “gosto disso ou daquilo”, sem que isso vire sentença de desonra. Talvez. Mas por enquanto, seguimos assistindo a esse teatro tragicômico: homens que repetem “sou hétero sim” enquanto alimentam o fetiche silencioso que não teriam coragem de confessar nem pro espelho.

No fim das contas, o heteroflex brasileiro é só mais um sintoma do quanto ainda estamos presos a um modelo tosco de masculinidade. Um modelo que diz que homem de verdade não sente, não chora, não abraça, não beija, não deseja fora da curva. Um modelo que faz o cara viver as experiências mais intensas — aquelas que ele talvez vá lembrar pro resto da vida — mas, na manhã seguinte, fingir que nada aconteceu. Então ele coloca a camisa, ajusta o relógio, manda mensagem pra namorada, chama o amigo de “viado” num tom de piada e volta a performar o machão inviolável.

Enquanto isso, a s€xualid4de segue lá, pulsando, vibrando por baixo da fantasia social. Porque desejo não se dobra tão fácil às regras. E uma hora ou outra ele volta, escapa, implora por um pouco de verdade. Mas até lá, o Brasil segue no seu joguinho. O país onde o homem come a feijoada com linguiça — e sai do restaurante garantindo que continua vegetariano. Tá bom, sei. Vai contando. Porque no fundo, a gente sempre soube a verdade que o seu corpo tá doido pra confessar.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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