A nossa história preta/africana é realmente muito extraordinária. Não há um período em toda a trajetória humana, desde os primórdios da civilização, em que a força, a sabedoria e o poder do povo africano não estejam presentes. Mesmo quando tentaram nos silenciar, invisibilizar ou demonizar nossas práticas, nossos saberes seguiram atravessando os séculos, intocados, reverberando no corpo, na música, na espiritualidade e na resistência.
É dentro desse contexto que surge uma das figuras mais enigmáticas, poderosas e respeitadas da história dos Estados Unidos: Marie Laveau, a implacável Rainha do Vodu de Nova Orleans. Uma mulher preta, livre, dona de si, que se tornou não apenas um símbolo da espiritualidade, mas também um pilar de influência social, política e cultural no século XIX.
Marie Laveau não era apenas uma sacerdotisa de vodu. Ela era, ao mesmo tempo, mãe, curandeira, advogada dos pobres, conselheira dos poderosos e, sobretudo, uma mulher que movimentava energias — tanto no plano visível quanto no invisível. Seu nome ecoava (ou melhor, reverberava) entre becos, casarões e palácios, provocando respeito, medo, admiração e mistério.
Sua origem, assim como acontece com quase toda a linhagem africana na diáspora, é marcada por lacunas, apagamentos e mistérios. No entanto, relatos históricos apontam que ela nasceu em 10 de setembro de 1801, no famoso Bairro Francês de Nova Orleans, uma região profundamente marcada pela presença da cultura africana, da influência caribenha e, claro, das cicatrizes da escravidão.
Filha de uma mulher africana liberta e, possivelmente, de Charles Laveau, que à época era uma figura política influente, Marie cresceu transitando entre dois mundos: o da marginalização imposta às pessoas de pele escura e o dos privilégios seletivos dos brancos. E foi justamente nessa encruzilhada social que ela moldou sua potência.
Desde cedo, aprendeu os mistérios do vodu, da medicina natural e da magia ancestral. Seu conhecimento foi passado por gerações — de mãe para filha, de avó para neta —, como é tradição nas linhagens africanas. Mais do que uma prática espiritual, o vodu em Nova Orleans era (e continua sendo) uma forma de resistência, de autocuidado, de proteção coletiva e de afirmação identitária.
Mas atenção: vodu nunca foi sinônimo de maldade, feitiçaria no sentido pejorativo ou bruxaria diabólica, como a cultura ocidental tentou propagar por séculos. Pelo contrário. O vodu é uma religião de matriz africana, profundamente ligada à natureza, aos ancestrais e aos ciclos da vida. É cura, é força, é conexão com o invisível.
Marie Laveau compreendia isso como poucas pessoas. E foi exatamente por dominar esses saberes que ela se tornou uma das mulheres mais poderosas de sua época. Seus atendimentos espirituais não se limitavam às comunidades pretas e pobres; muito pelo contrário. Brancos, juízes, empresários e até políticos batiam à sua porta em busca de ajuda — fosse para resolver problemas amorosos, proteger negócios, curar enfermidades ou pedir intervenção em questões judiciais.
Ela era uma verdadeira estrategista. Usava, além de sua sabedoria espiritual, uma impressionante inteligência social. Sabia tudo sobre todos. Dizia-se que Marie tinha uma extensa rede de informantes — desde empregadas domésticas até trabalhadores dos portos — que lhe mantinham atualizada sobre os segredos das elites. Isso fazia dela não só uma sacerdotisa, mas uma mulher com um poder político disfarçado de misticismo.
Sua influência, inclusive, foi tão grande que até hoje seu nome é reverenciado. Ela aparece em músicas, livros, filmes, séries e, mais recentemente, na série American Horror Story: Coven, onde foi interpretada magistralmente pela atriz Angela Bassett.
Mesmo com os toques de ficção e fantasia da série, é inegável que Marie Laveau segue sendo uma lenda viva, um arquétipo da mulher preta africana livre, poderosa e indomável.
Mas a trajetória de Marie não se limitou aos rituais. Ela também atuava como enfermeira e parteira, oferecendo cuidados gratuitos para pessoas marginalizadas pela sociedade. Durante surtos de cólera que atingiram Nova Orleans, por exemplo, foi ela quem esteve à frente de ações solidárias, cuidando de doentes e acolhendo os desamparados.
Na vida pessoal, Marie se casou com Jacques Paris, um homem de origem haitiana, que desapareceu misteriosamente anos depois. Viúva, ela passou a ser chamada de “A Viúva Paris”. Mais tarde, ela iniciou um relacionamento com Louis Christophe Duminy de Glapion, com quem teve vários filhos — embora registros concretos sejam difíceis de confirmar, dado o contexto de racismo e apagamento da época.
O fim de sua vida é envolto no mesmo mistério que marcou sua existência. Marie Laveau faleceu em 15 de junho de 1881, aos 79 anos, mas, para muitos, ela nunca partiu. Seu túmulo, localizado no Cemitério de St. Louis nº1, em Nova Orleans, se tornou um dos locais mais visitados da cidade.
Até hoje, pessoas deixam oferendas, fazem pedidos, agradecem e riscam o famoso “X” no túmulo, como parte de um ritual para obter favores da rainha do vodu.
E aqui está a pergunta que nunca se cala: Marie Laveau realmente morreu? Ou ela apenas atravessou o véu, tornando-se parte das forças invisíveis que regem esse mundo?
O que é certo é que seu legado segue pulsando — na espiritualidade, na cultura, na música, na história e, sobretudo, na resistência preta. Marie Laveau não foi apenas uma mulher. Ela foi (e é) um portal. Uma encruzilhada entre mundos. Uma lembrança viva de que nossa história, nossa magia e nossa potência são indestrutíveis.
Você já conhecia a história dessa mulher africana da diáspora poderosa?