Antes de Colombo: conheça o imperador do Mali que navegou rumo à América em 1311.

A narrativa histórica tradicional sobre a chegada à América por muito tempo exaltou figuras europeias como Cristóvão Colombo. Durante séculos, ensinou-se e ainda se ensina que ele “descobriu” um Novo Mundo em 1492 – uma visão que ignora a presença milenar dos povos indígenas e visitantes de outros continente, principalmente de África. Sabe-se hoje que Colombo não foi o primeiro: por volta do ano 1000 os viquingues já haviam estado na América, e muitos outros povos também cruzaram oceanos antes de 1492. Essas histórias alternativas convidam a repensar a ideia de “descoberta” e a reconhecer contatos pré-coloniais negligenciados pela narrativa eurocêntrica.

Um desses relatos com evidências históricas envolve o Império do Mali, na África Ocidental, e seu governante Abubakari II no início do século XIV. De acordo com registros da época, esse imperador maliano organizou uma expedição marítima de grande porte em 1311, com o objetivo de atravessar o oceano Atlântico rumo a terras desconhecidas . Mansa Musa, seu sucessor, relatou no Egito em 1324 que o antecessor abdicara do trono para liderar pessoalmente essa frota de centenas de navios através do Atlântico . Os navios partiram da costa do atual Senegal/Gâmbia e nunca mais retornaram, alimentando especulações sobre o destino dos navegantes africanos.

O Império do Mali era possivelmente o mais rico e extenso de seu tempo , com fronteiras do Saara ao Atlântico e controle das rotas transaarianas do ouro e do sal. Com tanta prosperidade e conhecimento disponíveis, Abubakari II tinha os meios e a motivação para ousar navegar além-mar , desafiando a noção europeia de um “mar tenebroso” inalcançável.

A perspectiva decolonial nos convida a reexaminar essa história com um olhar crítico. A ideia de que africanos chegaram às Américas antes dos europeus foi longamente ignorada – reflexo de uma historiografia que privilegia feitos europeus e silencia outras civilizações. Revisitar a expedição de Abubakari II significa reafirmar os laços históricos entre africanos e povos indígenas no período pré-colonial, reconhecendo também uma iniciativa de exploração marítima fora do eixo europeu. Hoje, pesquisadores malianos empenham-se em reunir evidências dessa jornada esquecida, com o objetivo de trazer à tona essas “partes ocultas da história” .

O Império do Mali: potência comercial e marítima

Mapa do Império do Mali (c. 1337), indicando suas fronteiras e rotas comerciais na África Ocidental . O Mali floresceu como um império comercial de primeira grandeza no século XIV, controlando minas de ouro e as rotas caravaneiras que ligavam a África Ocidental ao Mediterrâneo. Seu território se estendia até o Atlântico (atual Senegal e Gâmbia), o que proporcionava acesso direto ao mar. Fontes sugerem que as embarcações da região já eram capazes de travessias oceânicas longínquas, favorecidas pelas correntes marítimas rumo ao oeste . Combinando esse conhecimento náutico à abundante riqueza do império, Abubakari II conseguiu equipar uma grande frota – fala-se em cerca de 2.000 navios, tripulados e abastecidos para navegar por anos .

Evidências e relatos da expedição malinesa

Mansa Musa é a principal fonte histórica sobre essa saga. Em conversa registrada pelo escritor árabe al-Umari, Musa descreveu a determinação de Abubakari II em alcançar “o fim” do Atlântico: ele partiu à frente de uma frota de navios que adentrou o oceano e jamais voltou . Fora essa crônica, não há registros malineses do feito , mas cronistas europeus dos séculos XV e XVI mencionaram indícios de um contato afro-americano pré-colombiano. Colombo relatou que nativos caribenhos falaram de visitantes negros vindos do sul, portando lanças de metal guanín típico da África Ocidental . Esses relatos sugerem que navegantes africanos alcançaram as Américas pouco antes dos europeus.

Pesquisadores como Ivan Van Sertima apontam evidências arqueológicas dessa conexão: esculturas olmecas com traços negros e até restos humanos de possível origem africana em sítios pré-colombianos . Mas estudiosos convencionais ressaltam que não há artefatos africanos confirmados nem indícios genéticos desse contato .

Impacto das trocas culturais afro-indígenas

Mercadorias e saberes teriam circulado em ambos os sentidos: ouro, tecidos e técnicas africanas em troca de alimentos, plantas e artesanatos ameríndios . Cronistas europeus observaram tecidos com padrões da África Ocidental e ligas metálicas como o guanín em uso no Caribe pré-colonial – sutis indícios de influência africana. Por sua vez, os expedicionários malineses teriam absorvido novos produtos e conhecimentos americanos, enriquecendo sua própria sociedade.

Desconstruindo o mito da “descoberta” da América

Reexaminar narrativas como essa ajuda a desconstruir o mito eurocêntrico da “descoberta” da América. Sabe-se que Colombo não encontrou um território desabitado – ao chegar em 1492 ele foi visto por sociedades indígenas já estabelecidas . Ainda assim, por séculos a história europeia celebrou Colombo como descobridor e marco inicial da era americana, apagando os contatos anteriores e as civilizações nativas.

A expedição de Abubakari II reforça a visão de que o Novo Mundo não era isolado à espera dos europeus, mas parte de um globo interconectado. Considerar que um império africano medieval atravessou o Atlântico ressignifica nossa compreensão do passado: mostra que a ousadia de cruzar oceanos não foi exclusividade europeia, e que africanos e ameríndios possivelmente interagiram antes do período colonial. Reconhecer essas possibilidades valoriza as contribuições de povos africanos e indígenas e promove uma visão global mais inclusiva. Dar voz a episódios silenciados como o de Abubakari II celebra a diversidade da experiência humana e rompe com a visão de que a história das Américas começou com a chegada europeia.

Fontes:

1. Al-Umari (século XIV), citado em Atlantic voyage of the predecessor of Mansa Musa – relato de Mansa Musa sobre a expedição de Abubakari II.

2. Niane, D. T. et al. – General History of Africa (UNESCO) – descrição do poder econômico e territorial do Império do Mali.

3. Van Sertima, Ivan – They Came Before Columbus – evidências de possíveis contatos transatlânticos pré-colombianos (relatos de Colombo e vestígios olmecas).

4. Haslip-Viera, Gabriel et al. – Robbing Native American Cultures – visão crítica sobre as hipóteses de contato africano com as Américas.

5. Encyclopedia.com – Travelers from West Africa – resumo de evidências de viagens transoceânicas africanas e trocas culturais pré-1492.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

apoia.se