A quem interessa a destruição do movimento negro?

A Proposta de Emenda à Constituição nº 27/2024, apelidada de “PEC dos pardos”, segue avançando no Congresso Nacional. Depois de aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJC), ela agora tramita na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR). deputado Hélio Lopes (PL-RJ), conhecido como Hélio Negão, protocolou em 2 de setembro de 2025 o requerimento para a realização de uma audiência pública sobre o tema. Até o momento, a audiência ainda não foi agendada, mas já estão confirmados nomes como Beatriz Bueno e Denis Santos, vinculados ao movimento chamado “Parditude”.

A proposta e seus defensores sustentam que pardos devem ser reconhecidos como grupo separado da população negra. O argumento é de que a fusão entre pretos e pardos, adotada pelo IBGE e incorporada por décadas de militância, teria apagado especificidades. A PEC pretende, portanto, instituir constitucionalmente essa divisão, com impactos diretos sobre estatísticas oficiais, cotas raciais e políticas afirmativas.

Esse é o dado imediato da notícia. Mas é impossível falar da PEC sem situá-la numa discussão muito mais ampla: a categoria “negro” e a identidade africana. Aqui está a encruzilhada que nos obriga a refletir: que lugar ocupa a palavra negro em nossa história? Quais seus limites? E por que, mesmo reconhecendo tais limites, ela foi e continua sendo indispensável como ferramenta política?

Negro: uma palavra marcada pelo colonialismo

A palavra “negro” não nasceu de nós. Foi criada no interior do sistema colonial europeu para classificar, inferiorizar e mercantilizar africanos. Um africano, ao ser sequestrado de sua terra, deixava de ser iorubá, akan, banto, ewe ou ashanti; deixava de ser rei, camponês, guerreiro, sacerdote; deixava de ter nome e linhagem. Passava a ser simplesmente “negro”. Não era mais sujeito, mas objeto de exploração.

Ser chamado de negro, durante séculos, significou ser reduzido a mercadoria, ser destituído de humanidade. Esse é o peso de origem do termo, e é por isso que precisamos criticá-lo. Ele é a marca da desumanização, o rótulo imposto para transformar povos diversos em massa homogênea destinada à escravidão.

Negro: insulto transformado em bandeira

Mas a história é também feita de ressignificação. Ao longo do século XX, o movimento negro no Brasil e em outras partes das Américas apropriou-se do termo e o transformou em bandeira política. O insulto colonial foi resignificado em instrumento de unificação.

No Brasil, essa unificação entre pretos e pardos sob a categoria negro foi decisiva. Sem ela, o racismo continuaria invisível nos números. Com ela, o IBGE pôde revelar que pretos e pardos, juntos, constituem a maioria da população brasileira e que sofrem índices semelhantes de desigualdade em educação, renda, saúde, segurança e representação política. Sem essa categoria, as políticas de cotas jamais teriam a base estatística e política que sustentou sua criação.

Portanto, a palavra negro é contraditória: nasce como marca colonial, mas foi transformada em arma de enfrentamento. É cicatriz e bandeira ao mesmo tempo.

Africanos na diáspora

É nesse ponto que entra a reflexão pan-africanista. Por mais importante que seja a categoria negro como ferramenta política, nossa essência identitária é outra: somos africanos.

Mesmo em terras roubadas chamadas Brasil, mesmo após séculos de silenciamento, nossa raiz não é apagada. A palavra negro é útil para enfrentar o sistema, mas ela não nos devolve nossa história. O que nos devolve identidade é afirmar que somos descendentes de africanos, parte de uma diáspora forçada.

Essa distinção é fundamental: ser negro é uma categoria social construída dentro do sistema colonial; ser africano é uma identidade civilizatória, cultural e histórica que nos conecta a Kemet, a Congo, a Yoruba, a Angola, a Cabo Verde. É reconhecer que não começamos em 1500, mas em milênios de história africana.

O perigo da ruptura entre pretos e pardos

A famigerada PEC dos pardos propõe, de forma explícita, uma ruptura entre pretos e pardos. Não se trata apenas de classificação, mas de desmontar a unificação que foi conquista histórica. Pretos e pardos unidos formam a categoria negro, que deu corpo ao movimento político capaz de expor desigualdades e conquistar direitos. Separados, tornam-se estatísticas dispersas, vulneráveis e facilmente manipuláveis.

Essa ruptura não é novidade. É apenas mais uma versão sofisticada da velha estratégia colonial de fragmentação. Desde o sequestro nos navios até a senzala, dividir sempre foi método de dominação. Em São Paulo, africanos foram reduzidos a caricaturas: um transformado em máquina sexual, forçado a gerar centenas de filhos; outros apelidados de “morcego” e “ganso”. Nenhum deles era reconhecido como africano, mas apenas como função útil ao sistema escravista.

Hoje, a lógica se repete: em vez de nomes arrancados, categorias políticas divididas; em vez de caricaturas racistas, discursos parlamentares. A essência, contudo, é a mesma: fragmentar para enfraquecer.

Por que a unidade é estratégica

Unificar pretos e pardos na categoria negro não é negar diferenças. É somar forças contra um inimigo comum: o sistema de opressão racial que, em diferentes tonalidades, afeta a todos. Essa unidade permitiu:

  • Expor dados do IBGE que escancaram desigualdades;
  • Sustentar juridicamente políticas de cotas raciais;
  • Dar visibilidade ao genocídio da juventude preta e parda;
  • Consolidar movimentos como a Marcha Zumbi dos Palmares (1995);
  • Fortalecer a luta contra a violência policial e pela memória da escravidão.

Fragmentar essa unidade, como pretende a PEC, é desfazer a base de todas essas conquistas.

Entre a crítica e a necessidade

Diante disso, precisamos assumir um duplo movimento. Criticar a palavra negro porque nasceu do colonialismo, da desumanização, da violência. Mas também reconhecer sua importância estratégica como ferramenta de unificação política.

O pan-africanismo nos lembra: nossa identidade profunda é africana. É ela que nos devolve dignidade, história e horizonte. Mas no Brasil de hoje, marcado por desigualdades estruturais, a categoria negro segue sendo trincheira necessária.

Não se trata de escolher entre uma e outra, mas de compreender seus papéis. Africano é quem somos. Negro é a ferramenta que usamos para lutar.

A PEC dos pardos tenta nos arrancar a arma mais poderosa que conquistamos: a unidade. Separar pretos de pardos não é reconhecimento, é retrocesso. Ao mesmo tempo, precisamos ir além da palavra negro para não ficarmos presos à identidade imposta pelo colonizador.

Nossa tarefa é dupla: defender a categoria negro como instrumento político de unificação e reafirmar, com ainda mais força, que somos africanos na diáspora. Essa é nossa essência, nossa raiz e nossa força.

A quem interessa a destruição do movimento negro? Às elites que sempre lucraram com a divisão. A quem interessa a nossa união? A nós mesmos, descendentes de África, que sabemos que só na unidade reside a possibilidade de transformação.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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