“O amor é o ridículo da vida”, escreveu Cazuza, talvez sem saber que estava antecipando uma era onde o amor se transformaria em espetáculo, meme e algoritmo. Rubem Alves, com sua doçura filosófica, deixou um alerta poético: “Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar”. Nietzsche, como sempre, veio com o tapa sem anestesia: “Ninguém ama ninguém. Você ama o desejo, não o desejado.”
Três olhares, três feridas abertas sobre um mito que insiste em sobreviver à própria falência: o amor romântico. A grande fábula do Ocidente.
O que chamamos de “amor” hoje é, muitas vezes, a tentativa desesperada de viver uma narrativa escrita por outros: pelo cinema, pelos contos europeus, pelas músicas pop e agora pelos stories com filtros de casal. Mas o filtro não cura a frustração. Ele apenas retoca a cena enquanto a alma esfarela fora do enquadramento.
A engrenagem do encantamento
O amor romântico como estrutura emocional é um projeto político. Ele foi desenhado para ser idealizado, inalcançável, e portanto, funcional dentro de uma sociedade que precisa da frustração como combustível para o consumo. Frustração amorosa vende remédio, viagem, maquiagem, terapia, autoajuda, silicone, roupas novas, novos parceiros.
Ele te faz acreditar que está incompleto. E, no lugar do autoconhecimento, oferece uma obsessão: o outro. Não qualquer outro — mas o que cumpre os requisitos do mito: salvação, completude, reconhecimento. Amar, dentro dessa lógica, não é uma escolha consciente. É um ato compulsivo travestido de destino.
Essa engrenagem se atualizou nas mídias sociais. Antes, o amor era uma carta. Agora é uma notificação. Antes, era presença. Hoje, é performance.
O algoritmo ama casais
Não é coincidência que as redes premiem casais com visibilidade. O casal virou produto. O amor virou conteúdo. As brigas viram stories enigmáticos. A reconciliação vira Reels com trilha de Coldplay. Existe mais expectativa em uma publicação de “aniversário de namoro” do que num pedido de desculpas real. Porque o que conta não é o afeto — é a validação pública.
Amar virou sinônimo de exposição. Amar em silêncio? Suspeito. Amar com modéstia? Inútil. Amar com profundidade? Quase impossível, quando o palco exige aplauso a cada cena.
As pessoas não se apaixonam pelas outras, mas pelos avatares que elas oferecem. E quando a máscara cansa, o script muda. A substituição é rápida, a conexão é rasa, o vínculo é descartável. O amor deixou de ser poesia para virar uma assinatura de aplicativo.
Narcisismo em dupla
Muito do que se chama de amor, hoje, é apenas ego ferido querendo atenção. Não queremos um outro: queremos uma plateia íntima. Alguém que nos aplauda, nos cure, nos canonize. O relacionamento vira espelho: “me mostra o que eu quero ver em mim, ou vou embora.”
É por isso que tantos casais terminam no primeiro incômodo. A geração do amor líquido não tolera atrito — porque acredita que o amor verdadeiro é leve, fácil, fluido. Mas não há profundidade sem atrito. O amor real não é um parque de diversões. É um espelho sujo que você limpa junto com o outro, mesmo sem garantia de que haverá reflexo limpo no fim.
Nietzsche não estava sendo cínico — ele estava sendo honesto: amamos o efeito do outro sobre nós. Amamos o que o outro nos faz sentir, não necessariamente quem ele é. E quando o efeito passa, o amor evapora. Isso não é falha moral. É estrutura psíquica. O problema é quando fingimos que é o contrário.
O desmonte é necessário
Romper com o mito do amor romântico não é negar o amor — é libertar o amor. É abrir espaço para uma nova ética relacional, baseada em presença, não em expectativa; em liberdade, não em posse; em construção, não em enredo.
Amar alguém sem projetar, sem controlar, sem exigir salvação — eis o desafio que a maioria não está pronta para encarar. Porque isso exige um amor-próprio que não dependa do outro para existir. E a maioria ainda busca no outro aquilo que não encontra no espelho.
A desilusão com o amor romântico não é tragédia. É rito de passagem. E talvez o amor, aquele que não precisa de legenda, comece justamente quando você aceita a possibilidade de estar só — inteiro, pleno, em paz.
“Posso viver sem a grande maioria das pessoas. Elas não me completam, me esvaziam.”
Charles Bukowski