A decisão da 3ª Turma do TRF-4 desta terça-feira (16/09/2025) não é apenas um acontecimento jurídico, é um ponto de virada na luta contra a banalização do racismo no Brasil. Ao condenar Jair Bolsonaro e a União a pagar R$ 1 milhão cada por dano moral coletivo, a corte envia um recado direto: a era da “piada inofensiva” com a população negra precisa ser enterrada.
Durante anos, o ex-presidente normalizou ataques que iam do machismo ao autoritarismo, mas foi no campo racial que sua retórica mostrou um dos rostos mais cruéis: o do chamado “racismo recreativo”. A ideia de que, em nome do humor ou da informalidade, é aceitável reduzir um corpo negro a barata, piolho, sujeira. A corte entendeu o que muitos já gritavam das ruas: não se trata de brincadeira, trata-se de racismo — e racismo institucionalizado, vindo do mais alto cargo do país.
Racismo “em tom de piada”: o veneno disfarçado
Em 2021, Bolsonaro recebeu apoiadores no Alvorada. Diante de um homem negro com cabelo black power, comparou seu estilo a um criadouro de baratas. Depois, em outras ocasiões, falou em piolhos, cloroquina e sujeira. É assim que o racismo estrutural opera: não chega sempre com insultos diretos, mas infiltra-se como “brincadeira”, como “intimidade”.
É o mesmo mecanismo que durante décadas reduziu pessoas negras a estereótipos em programas de TV, piadas de bar, conversas de corredor. A diferença é que aqui não foi o “Zé da esquina” — foi o presidente da República. Quando o mais alto mandatário do país trata um símbolo da resistência negra, como o cabelo afro, como sujeira, ele dá aval para que todo racista de plantão se sinta confortável em repetir o gesto.
A importância do dano moral coletivo
O ponto alto da decisão do TRF-4 está em reconhecer que não se trata apenas de uma ofensa individual. O homem alvo da fala pode até dizer que não se sentiu atacado. Mas esse não é o ponto. O que está em jogo é o efeito coletivo: quando se atinge a identidade negra, quando se reforçam estigmas, quem sangra não é só uma pessoa, é um povo inteiro.
O racismo recreativo é insidioso porque busca sempre se proteger do debate: “foi só uma piada”, “o próprio não se ofendeu”, “estão exagerando”. O tribunal rompeu essa cortina de fumaça e cravou: houve sim dano coletivo, houve ofensa à dignidade da população negra, houve racismo. E isso custa caro.
O fim da era da imunidade presidencial?
Por décadas, figuras públicas se esconderam atrás da imunidade parlamentar ou da ideia de liberdade de expressão para destilar preconceito. Bolsonaro fez disso uma marca. A decisão do TRF-4 mostra que esse jogo começa a virar.
Não se trata de censura. Trata-se de responsabilização. Liberdade de expressão não é salvo-conduto para atacar comunidades inteiras. Do mesmo jeito que não se pode “brincar” com judeus, indígenas ou mulheres sem consequências, também não se pode usar o corpo negro como objeto de chacota.
Ao estabelecer um valor de R$ 1 milhão, o tribunal também sinaliza que ofensa tem preço. É simbólico, mas é pedagógico: toda vez que alguém de relevância pública decidir usar o humor para reforçar racismo, saberá que há um custo — moral, político e financeiro.
A reação previsível: vitimismo às avessas
Já era esperado: a defesa de Bolsonaro insiste que não houve crime, que não houve intenção, que a “vítima” não se sentiu atingida. Esse é o argumento clássico da extrema-direita: inverter os papéis, chamar de “mimimi” o que é violência, e pintar o agressor como vítima de censura.
Mas o TRF-4 não caiu na armadilha. A corte não julgou intenções, julgou efeitos. O que importa não é o que Bolsonaro quis ou deixou de querer. O que importa é que suas palavras reforçaram estigmas, inferiorizaram uma comunidade, perpetuaram o racismo estrutural. O tribunal mostrou maturidade ao olhar além da anedota pessoal e enxergar o impacto coletivo.
Não é qualquer penteado. O black power é um marco político, cultural e estético da luta do povo preto/africano. É afirmação de identidade, orgulho, resistência contra séculos de tentativa de embranquecimento. Quando Bolsonaro o reduz a criadouro de baratas, ele não insulta apenas um cidadão, mas uma história de luta.
É como se alguém zombasse de uma cruz para um cristão, ou da estrela de Davi para um judeu. É desrespeito a um símbolo, a um patrimônio cultural. O tribunal, ao reconhecer isso, coloca o racismo recreativo no lugar que merece: crime contra a dignidade coletiva.
Um precedente necessário
A decisão ainda cabe recurso, claro. Bolsonaro recorrerá, como sempre fez, usando a morosidade judicial a seu favor. Mas o precedente está lançado. Outras cortes, outros juízes, outras ações poderão se apoiar neste julgamento para reconhecer que a violência simbólica também é racismo.
Esse é o ponto: não podemos esperar que o racismo se manifeste apenas com agressões físicas, segregação ou insultos escancarados. Ele opera também no riso, na piada, na normalização do estigma. E precisa ser combatido exatamente aí, onde se esconde sob o manto do humor.