Calvo do Campari é preso por violência doméstica — e expõe o colapso moral dos ‘homens de bem’

Não falha: mais um “cidadão de bem”, homem branco, travestido de coach de masculinidade, termina preso por violência doméstica. O roteiro é velho, batido, previsível — mas ainda assim, devastador. Thiago Schultz, conhecido como o Calvo do Campari, figura influente entre os adeptos do movimento red pill, foi detido por agredir a própria namorada. É mais um capítulo de uma narrativa que o Brasil já deveria conhecer de cor, mas que insiste em repetir como um disco riscado: homens que pregam superioridade, controle e dominação acabam reproduzindo exatamente o que defendem — violência, humilhação e destruição emocional.

Mas vamos ampliar a lente. Este caso não é apenas sobre um influenciador. É sobre o ecossistema que o sustenta. Sobre a indústria milionária de “masculinidade tóxica”, que transforma insegurança masculina em conteúdo, ódio em engajamento e violência em método de vida. Uma fábrica de homens frustrados, alimentados por discursos que normalizam a misoginia como se fosse uma forma de autodescoberta. E mais grave: discursos que vendem a ideia de que mulheres são inimigas, obstáculos, objetos a serem domados ou descartados.

Quando um influenciador com milhares de seguidores reforça que “homem de verdade manda”, que “mulher tem que ser colocada no lugar”, que “feminismo destrói famílias”, ele não está apenas falando — ele está armando mentalidades. Ele está oferecendo munição simbólica para que homens convertam ressentimento em agressão, insegurança em violência, fragilidade emocional em brutalidade física. E cada curtida, cada comentário, cada compartilhamento ajuda a pavimentar esse caminho.

A violência não nasce do nada. Ela é cultivada. Ela é ensinada. Ela é performada. E quando alguém como o Calvo do Campari é preso por violência doméstica, não estamos vendo um desvio daquilo que ele pregava — estamos vendo a coerência final do seu discurso.

E aí está a parte mais amarga: o Brasil é terreno fértil para esse tipo de figura. Um país que mata uma mulher a cada 6 horas. Um país onde quase 4 milhões de mulheres sofrem algum tipo de violência por ano. Um país onde a Lei Maria da Penha, avançada e necessária, ainda enfrenta a barreira de delegacias despreparadas, juízes misóginos e instituições que normalizam a dor feminina como “drama” ou “exagero”.

Quando a violência doméstica explode, o Estado costuma chegar atrasado. E os discursos de ódio já fizeram o serviço: já corroeram autoestima, já silenciaram resistências, já moldaram comportamentos. Homens que consomem fontes contínuas de misoginia internalizam essas ideias como se fossem verdades científicas. E, quando pressionados, muitos recorrem àquilo que aprenderam nesses espaços: agressão, controle, humilhação.

O caso do Calvo do Campari é só a superfície. O subterrâneo é mais perigoso. A cada coach que fala sobre “resgatar a masculinidade”, milhares de jovens e homens adultos encontram justificativas para reproduzir comportamentos violentos. Muitos desses influenciadores não defendem crescimento, maturidade emocional ou responsabilidade afetiva. Eles defendem poder. E poder, na lógica deles, significa submeter.

É um teatro de virilidade frágil. Homens vendidos como alfas, mas emocionalmente quebrados. Homens que ensinam “como ser dominante”, mas não sabem lidar com frustração. Homens que falam em honra, mas praticam agressão. Homens que se dizem superiores, mas vivem reféns de inseguranças profundas. A masculinidade que eles vendem não liberta ninguém; ela apenas aprisiona — e, pior, fere.

E enquanto isso, do outro lado da história, mulheres seguem morrendo. Seguem denunciando, seguem pedindo socorro, seguem tentando sobreviver a um país que não as protege como deveria. Mulheres que muitas vezes enfrentam sozinhas um ciclo de violência que começou muito antes do primeiro tapa — começou no discurso.

E é por isso que a prisão do Calvo do Campari importa. Não pela figura dele em si, mas pelo que ela simboliza: a materialização do que acontece quando a misoginia vira carreira. Quando o machismo vira marca. Quando a violência vira conteúdo monetizável.

O caso deveria servir de alerta — para plataformas, para autoridades, para famílias e, principalmente, para homens. Mas será que vai? Ou será engolido pela máquina de desinformação que trata agressores como vítimas, vítimas como exageradas e a violência masculina como um detalhe inconveniente?

Um país que naturaliza a agressão nunca será seguro para mulheres — e tampouco será saudável para homens. A masculinidade que esses coaches vendem não é remédio; é veneno. E enquanto continuarmos permitindo que ela se propague sem contestação, veremos casos como esse se repetirem, sempre com nomes diferentes, sempre com rostos diferentes, sempre com a mesma dor.

Que esse episódio abra alguma fissura. Que convoque reflexão. Que exponha, mais uma vez, o quanto precisamos desmontar essa indústria da violência simbólica e real. E que homens entendam — de verdade — que força não é violência, liderança não é dominação e masculinidade não é controle.

Porque, se nada mudar, o próximo “cidadão de bem” já está sendo formado agora.🔥

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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