A decisão da Justiça do Rio Grande do Sul, que reconheceu uma idosa negra de 72 anos como herdeira dos antigos patrões para quem trabalhou desde os quatro anos de idade, é mais do que uma notícia jurídica: é um espelho cruel de quem ainda somos como sociedade. O gesto tardio de “justiça” não apaga sete décadas de exploração, de infância negada, de juventude roubada. Pelo contrário, escancara que o Brasil, socialmente, ainda não saiu do século XIX.
A escravidão foi abolida em 1888, mas essa abolição nunca significou inclusão. O fim da escravidão não veio acompanhado de terras, de reparação, de acesso a educação ou de integração social para os negros libertos. Pelo contrário: o Estado brasileiro abandonou milhões de pessoas à própria sorte, ao mesmo tempo em que incentivava a imigração europeia para “embranquecer” a população e preencher postos de trabalho com mão de obra considerada mais “civilizada”. Esse abandono histórico estruturou a desigualdade que ainda hoje marca o Brasil.
O caso da idosa de Porto Alegre é a prova viva desse passado não resolvido. Uma menina arrancada da infância e colocada desde os quatro anos numa casa de família, em situação análoga à escravidão, trabalhando sem salário, sem escola, sem direitos. Décadas depois, quando seus supostos “patrões” já haviam morrido, o Judiciário decidiu reconhecê-la como filha socioafetiva e garantir-lhe uma herança. A manchete soa como vitória, mas é, na verdade, denúncia. Não estamos diante de um ato de generosidade do Estado, mas diante da confissão de que o Brasil falhou — e segue falhando — em quebrar as correntes que nos amarram ao passado escravocrata.
É preciso encarar a contradição: não existe reparação possível quando uma vida inteira foi marcada pela exploração. Como mensurar o preço da infância perdida? Que valor tem a juventude roubada? O que se perde quando um ser humano envelhece sem nunca ter tido o direito de escolher quem seria? O reconhecimento judicial da idosa não corrige sua história; apenas oficializa uma ferida coletiva que já deveria ter sido tratada há mais de um século.
Esse episódio também desmonta a narrativa da “família” que tantas elites gostam de usar para justificar relações de trabalho desiguais. Quantas vezes já ouvimos que a empregada “é como da família”? Mas ser “como” nunca significou ser. O afeto existia, mas sempre atravessado pela linha invisível que separa privilégios de direitos. A empregada podia partilhar a intimidade da casa, mas nunca teve direito a herança, a salário justo, a descanso, a férias. Só depois de décadas de exploração é que a Justiça resolveu reconhecer o óbvio: aquela mulher sempre foi parte da família, mas parte silenciada, usada, invisibilizada.
E aqui está o ponto central: o Brasil ainda opera sob a lógica da casa-grande e da senzala. Mudaram os nomes, mas não a estrutura. O trabalho doméstico ainda é uma das ocupações mais comuns entre mulheres negras. A informalidade, a precarização e o tratamento desigual seguem sendo regra. A cada caso de trabalhadoras resgatadas em condições análogas à escravidão — seja em fazendas, em oficinas de costura ou em mansões de luxo — percebemos que a “abolição” nunca chegou de verdade.
O episódio da idosa de Porto Alegre deveria ser tratado não apenas como um caso jurídico, mas como denúncia social. Ele nos obriga a olhar no espelho e admitir que não superamos a escravidão, apenas a rebatizamos. O século XIX ainda nos governa quando naturalizamos a desigualdade, quando aceitamos que mulheres negras sigam ocupando os postos mais precarizados, quando fingimos que a abolição foi suficiente para zerar a dívida histórica.
Enquanto isso, as elites brasileiras seguem confortavelmente apoiadas na narrativa do mérito, como se suas fortunas não tivessem sido construídas sobre gerações de exploração. O trabalho invisível das mulheres negras foi — e continua sendo — a base de sustentação da sociedade brasileira. São elas que limpam, que cozinham, que cuidam, que servem. Mas raramente são reconhecidas como sujeitos plenos de direitos.
O reconhecimento judicial dessa idosa é importante, sem dúvida. Garante a ela um direito mínimo que já deveria ter existido desde sempre. Mas, ao mesmo tempo, é um lembrete brutal de que continuamos atrasados em séculos. Celebrar essa decisão como vitória é, de certa forma, aceitar que o mínimo seja tratado como extraordinário. É aplaudir um gesto simbólico enquanto a estrutura que produz a exploração segue intacta.
O Brasil não precisa de mais manchetes sobre “justiça tardia”. Precisa de reparação histórica de verdade. Precisa reconhecer que o racismo não é apenas um resquício do passado, mas um projeto ativo de manutenção de privilégios. Precisa de políticas que quebrem de vez a herança da escravidão, que garantam igualdade real, e não apenas o consolo tardio de uma certidão de nascimento alterada.
Enquanto isso não acontecer, cada caso como esse continuará a nos lembrar: socialmente, o Brasil ainda vive no século XIX.