Mais de 65 mil crianças foram registradas sem o nome do pai no Brasil nos 4 primeiros meses de 2025

O Brasil registrou, entre janeiro e abril de 2025, mais de 65 mil crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento, segundo dados divulgados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). O número representa 6,3% de todos os nascimentos no período e revela uma realidade social complexa, marcada pela ausência paterna e por desafios estruturais que atravessam gerações.

Um retrato preocupante

Os números mostram que a questão não é pontual e tampouco nova. Estados como São Paulo (10.564 casos), Bahia (6.901), Rio de Janeiro (6.215), Pará (5.887) e Minas Gerais (5.132) lideram as estatísticas. Esses dados indicam que a ausência do reconhecimento paterno está espalhada por todo o território nacional, sem se restringir a uma região específica.

Na prática, cada dado representa uma história individual: uma criança que inicia sua vida oficialmente reconhecida apenas pela mãe, sem a presença ou o nome do pai no documento mais básico de sua cidadania.

Crescimento contínuo do problema

O cenário já vinha chamando atenção em anos anteriores. Em 2024, o país registrou 158.931 nascimentos sem identificação paterna. Isso significa que, mesmo com campanhas de incentivo ao reconhecimento de paternidade, a curva ainda não apresenta queda significativa.

Na Bahia, por exemplo, apenas nos quatro primeiros meses de 2025 foram 3.764 registros sem o nome do pai, e 20% desses casos ocorreram em Salvador. O dado é alarmante, considerando o impacto que a ausência paterna pode ter não apenas do ponto de vista afetivo, mas também social e econômico.

As implicações dessa ausência

A falta do nome paterno na certidão de nascimento é muito mais do que uma questão burocrática. Ela representa um corte profundo nos direitos da criança, afetando:

  • Direito à identidade – saber quem é seu pai é um componente fundamental para a construção da própria história.
  • Acesso a benefícios – a ausência do reconhecimento paterno pode impedir o acesso a direitos como pensão alimentícia, herança e até benefícios previdenciários.
  • Desenvolvimento emocional – estudos na área da psicologia infantil indicam que a ausência de vínculo ou reconhecimento paterno pode gerar impactos emocionais duradouros.

Especialistas ressaltam que o registro incompleto pode gerar uma espécie de “apagamento social”, em que a criança cresce carregando uma lacuna em sua história e, muitas vezes, enfrentando estigmas.

Por que isso acontece?

As causas para esse cenário são múltiplas e variam conforme a realidade local. Entre os principais fatores apontados por pesquisadores e assistentes sociais estão:

  1. Falta de vínculo ou abandono afetivo – em muitos casos, o pai biológico simplesmente se ausenta da vida da mãe durante a gestação ou logo após o nascimento.
  2. Gravidezes não planejadas – situações em que não houve relação estável ou continuidade de contato entre os pais.
  3. Negligência ou recusa deliberada – casos em que o homem se nega a reconhecer a criança, mesmo ciente da paternidade.
  4. Questões socioeconômicas – a vulnerabilidade social pode dificultar o acesso das mães a processos judiciais para reconhecimento.
  5. Empecilhos culturais – ainda existe, em algumas regiões, a visão de que a responsabilidade integral pelo cuidado da criança recai sobre a mãe.

O que está sendo feito

Para tentar mudar esse cenário, iniciativas como a campanha “Meu Pai Tem Nome” vêm sendo promovidas por defensorias públicas em diversos estados brasileiros. Essas ações buscam:

  • Facilitar exames de DNA de forma gratuita.
  • Garantir que o reconhecimento de paternidade possa ser feito diretamente nos cartórios.
  • Conscientizar sobre a importância do registro completo para o futuro da criança.
  • Oferecer orientação jurídica e apoio psicossocial às mães.

Apesar dos esforços, especialistas apontam que ainda é necessário fortalecer políticas públicas permanentes, garantindo que o acesso ao reconhecimento paterno seja simples, rápido e sem custos para as famílias.

Um problema que atravessa gerações

O Brasil carrega uma herança histórica de ausência paterna que remonta ao período colonial e escravista. Em muitas famílias, especialmente nas classes mais vulneráveis, a figura paterna esteve ausente não apenas fisicamente, mas também do ponto de vista do cuidado e do afeto. Esse padrão, perpetuado ao longo de séculos, é reforçado por estruturas sociais e econômicas que ainda não priorizam a corresponsabilidade na criação dos filhos.

Além disso, a desigualdade de gênero e a sobrecarga das mulheres no cuidado infantil contribuem para normalizar a ausência masculina na parentalidade. Em um país onde muitas mães são chefes de família, esse contexto encontra terreno fértil para se repetir.

Impactos na sociedade

O problema não afeta apenas as famílias diretamente envolvidas — ele tem reflexos amplos:

  • Economia – mães solo muitas vezes enfrentam mais dificuldades para ingressar ou se manter no mercado de trabalho, o que pode afetar a renda familiar e a economia local.
  • Educação – a ausência paterna pode contribuir para a evasão escolar, seja por questões emocionais ou por sobrecarga de responsabilidades da criança dentro de casa.
  • Saúde pública – crianças criadas em contextos de abandono paterno podem apresentar mais dificuldades emocionais, demandando maior atenção do sistema de saúde.

Caminhos possíveis

Enfrentar esse problema exige uma abordagem integrada, que vá além da punição legal ao pai ausente. É preciso investir em:

  1. Educação sexual e reprodutiva – para reduzir gravidezes não planejadas e promover responsabilidade compartilhada.
  2. Campanhas de conscientização – que desnaturalizem a ausência paterna.
  3. Apoio às mães solo – com políticas de assistência, creches acessíveis e suporte financeiro.
  4. Judicialização facilitada – com exames de DNA gratuitos e rápidos.
  5. Cultura de corresponsabilidade – estimulando a presença e o cuidado paterno como parte essencial do desenvolvimento infantil.

No Brasil, a possibilidade de decidir se quer engravidar, quando e quantas vezes, ainda é profundamente atravessada pela desigualdade social e racial. Para mulheres brancas com maior acesso à educação, informação e métodos contraceptivos, adiar a maternidade para investir nos estudos ou na carreira é uma escolha real. Já para milhões de mulheres pretas e pobres, essa escolha é limitada ou inexistente, seja pela falta de acesso a serviços de saúde reprodutiva, seja pela ausência de políticas públicas que garantam autonomia sobre o próprio corpo.

Essa desigualdade se reflete diretamente nos índices de mães solo e no número de crianças registradas sem o nome do pai. As mulheres pretas, historicamente colocadas nas camadas mais vulneráveis da sociedade, são as que mais enfrentam a maternidade não planejada associada à ausência paterna. São elas que, com frequência, precisam sustentar sozinhas a casa e os filhos, conciliando jornadas exaustivas de trabalho mal remunerado com responsabilidades domésticas e afetivas invisibilizadas.

A falta de corresponsabilidade paterna é um traço estrutural que, no caso das mulheres pretas, se agrava pelo racismo institucional. A cultura que naturaliza que a mulher “dê conta de tudo” reforça a invisibilidade do homem no processo de cuidado e educação dos filhos, enquanto o Estado se omite em criar mecanismos eficazes de responsabilização. O resultado é a perpetuação de um ciclo no qual as mulheres pretas arcam com o peso quase exclusivo da parentalidade, muitas vezes sem qualquer suporte.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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