O Brasil vive um momento raro. Uma parcela significativa da população finalmente começou a olhar para o Congresso Nacional e perceber que ele não é — e talvez nunca tenha sido — um aliado do povo. Depois de décadas de uma democracia tutelada pelos mesmos grupos econômicos e políticos, o brasileiro médio está, enfim, chamando as coisas pelos nomes certos. E isso tem incomodado profundamente a elite branca deste país.
As redes sociais se tornaram palco de campanhas contundentes que batem direto nesse ponto: hashtags como #CongressoÉInimigoDoPovo, #HugoMortoÉTraidor e #DeputadosDosRicos passaram a expor a verdade inconveniente de que a Câmara e o Senado atuam quase sempre para manter privilégios históricos — concentrando renda, favorecendo empresários e fazendeiros, e sabotando qualquer tentativa real de justiça social.
Em meio a esse ambiente, não surpreende que figuras do topo da pirâmide econômica — como Roberto Campos Neto, atual presidente do Banco Central, neto de um ministro da ditadura militar, banqueiro e dono de um patrimônio declarado de R$ 43 milhões — venham a público para classificar o atual clima de mobilização popular como perigoso. Segundo ele, “esse discurso de ‘nós contra eles’ é ruim, não fará o país crescer”.
Mas a pergunta óbvia é: ruim para quem?
O medo dos donos do Brasil
Quando Campos Neto — herdeiro direto de um projeto político-econômico que concentrou terras, recursos e poder nas mãos de poucas famílias — fala sobre o risco de um discurso que separa “nós” e “eles”, ele está falando do medo do sistema. Porque o “eles”, no caso, é o próprio grupo ao qual ele pertence: brancos, ricos, banqueiros, latifundiários, grandes empresários e políticos alinhados a esse projeto.
Historicamente, o Brasil foi construído sobre a espinha quebrada do povo africano escravizado, do sangue indígena derramado, e das massas trabalhadoras exploradas. Durante séculos, esse modelo foi aceito ou naturalizado. Mas hoje as redes sociais e a internet possibilitaram algo inédito: o brasileiro tem acesso a dados, análises, comparações internacionais, vídeos, gráficos — e tudo isso mostra o óbvio que antes ficava restrito a teses acadêmicas: o Congresso Nacional não representa o povo, representa o capital.
Em levantamento recente, mais de 72% dos parlamentares brasileiros são empresários ou fazendeiros. São pessoas que legislam sobre impostos, dívidas trabalhistas, isenções fiscais e previdência social, mas que têm interesses diretos em manter salários baixos, serviços públicos precários e benefícios concentrados. O Congresso não apenas é um clube branco e masculino, como também é um clube de ricos que faz leis para se beneficiar.
O incômodo com o “nós contra eles”
A fala de Campos Neto é sintomática: sempre que o povo começa a perceber que há um “eles” explorando, manipulando e lucrando em cima do “nós”, surge o discurso moralista da pacificação. Dizem que “polarizar é ruim”, que “dividir o país não ajuda”, que “é hora de união”.
Só que nunca houve união. Sempre foi “eles contra nós”. O que muda é que, agora, com mais pessoas entendendo o jogo, a estrutura começa a tremer. E aí quem sempre mandou teme perder o controle das regras.
Por isso o discurso do presidente do Banco Central é quase um pedido de socorro: “por favor, parem de dividir o país entre ricos e pobres, entre exploradores e explorados, porque isso ameaça a estabilidade do nosso patrimônio, a previsibilidade dos nossos lucros, o valor das nossas ações”.
Quando o povo acorda
A explosão de hashtags críticas ao Congresso mostra que uma parte do Brasil está deixando de ser massa de manobra. Pela primeira vez em muito tempo, vemos surgir campanhas digitais orgânicas que expõem como deputados e senadores articulam para barrar pautas populares — aumento real do salário mínimo, taxação de super-ricos, investimentos robustos em saúde e educação — enquanto aprovam auxílios e emendas bilionárias que irrigam seus próprios redutos eleitorais.
Não é coincidência que essas movimentações partam majoritariamente de jovens, de pessoas pretas, de coletivos periféricos e de influenciadores que fogem da cartilha empresarial. Afinal, são justamente esses grupos que mais sofrem com o desemprego, com a violência policial, com a falta de saneamento e com o colapso do SUS.
Ao mesmo tempo, políticos brancos, empresários milionários e seus porta-vozes na mídia tentam desacreditar o movimento, chamando-o de “populismo”, “discórdia” ou “desinformação”. É o medo do eleitorado se tornar consciente e começar a eleger representantes genuinamente comprometidos com redistribuição de renda e com o fim de privilégios históricos.
O papel da internet na virada
A internet hoje é o maior pesadelo dessa elite política e econômica. Antes, o discurso era centralizado: jornais impressos, rádios e canais de TV construíam a narrativa oficial, decidiam quais escândalos teriam repercussão e quais seriam varridos para debaixo do tapete.
Agora, perfis independentes, vídeos curtos, memes e threads no Twitter escancaram o que antes ficava restrito a reuniões acadêmicas ou sindicatos. É um fenômeno irreversível. E é por isso que frases como a de Campos Neto precisam ser lidas não como advertências neutras, mas como declarações desesperadas de quem vê seu castelo balançar.
Não é sobre “crescer o país”
Campos Neto diz que o “nós contra eles” não fará o país crescer. Mas qual país ele está falando? O país dos bancos batendo recordes de lucro enquanto a fila do osso se multiplica? O país em que o Congresso se auto-beneficia com auxílios e verbas enquanto escolas caem aos pedaços? O país das fazendas gigantes que exportam soja e milho enquanto o brasileiro paga caríssimo pelo arroz e feijão?
Para esse Brasil deles, de fato, o discurso crítico ao Congresso e às elites pode atrapalhar. Porque, quanto mais o povo perceber que foi enganado, menos tolerará que as regras do jogo continuem sendo escritas por quem só quer proteger o próprio bolso.
O incômodo de Campos Neto — assim como o de muitos outros banqueiros, empresários e políticos — revela o estágio que atingimos. A maré está virando, ainda que lentamente. O brasileiro médio começa a entender que a desigualdade não é obra do acaso, nem fruto exclusivo de “corrupção pontual”, mas resultado de um projeto de país feito sob medida para manter poucos no topo e muitos na base, silenciosos.
Por isso, dizer “nós contra eles” não é plantar discórdia. É simplesmente nomear a realidade. E é só a partir dessa nomeação que poderemos construir um país onde, quem sabe um dia, não existam mais “eles” que mandam e “nós” que obedecemos.
Até lá, sigamos chamando cada um pelo nome que merece — e denunciando quem quer nos manter dormindo.