A maior parte da riqueza acumulada pelas elites brancas do Brasil tem raízes diretas na escravidão. Durante mais de três séculos, milhões de africanos foram sequestrados, transportados em condições desumanas e obrigados a trabalhar até a morte em plantações, minas e obras que fundaram o Brasil econômico. A mão de obra escrava foi o motor da cana, do café e do ouro, que enriqueceram famílias cujos sobrenomes ainda estampam placas de ruas e fachadas de bancos. O que poucos têm coragem de dizer é que esses mesmos capitais foram reinvestidos em terras e negócios urbanos, servindo de alicerce para dinastias que, hoje, ostentam o status de “empresários bem-sucedidos”.
Enquanto países como os Estados Unidos, mesmo que tardiamente, discutem compensações financeiras e políticas afirmativas robustas para descendentes de africanos escravizados, o Brasil sequer reconhece o tamanho da dívida histórica que carrega. Não houve indenização, não houve reforma agrária para ex-escravizados, não houve qualquer política de reparação que desmontasse o abismo criado pela escravidão. Pelo contrário: o país investiu em projetos de “embranquecimento” através da imigração europeia e criminalizou práticas culturais africanas, reforçando um racismo estrutural que persiste até hoje e garante que a pobreza continue tendo cor.
Paralelo a isso, a história brasileira também se construiu sobre o genocídio dos povos indígenas, que foram massacrados, expulsos de suas terras e reduzidos a fragmentos populacionais enquanto suas terras eram loteadas para fazendas e depois para mineradoras e hidrelétricas. O mesmo Brasil que não reparou os descendentes de africanos escravizados, assassinou e continua assassinando povos originários, em nome de um “progresso” que só enriqueceu uma minoria branca. É um triplo crime histórico: escravidão sem reparação, genocídio indígena e a perpetuação de um sistema econômico que protege herdeiros do roubo colonial.
No Brasil, a palavra “meritocracia” ganhou status quase sagrado. Está nos discursos políticos, nas palestras motivacionais e até nas redes sociais de influenciadores que se orgulham de “ter vencido na vida”. Mas esse mantra repetido à exaustão serve mais para anestesiar consciências do que para revelar a realidade. Quando olhamos de perto, a origem da riqueza das elites brancas brasileiras não tem nada a ver com esforço pessoal isolado ou genialidade empreendedora. Ela nasce, em grande parte, da combinação explosiva entre heranças bilionárias, terras acumuladas por gerações e um sistema financeiro que só existe para multiplicar patrimônio de quem já é rico.
Quem sustenta o Brasil? O trabalhador comum, que pega ônibus lotado, sobrevive com salário mínimo, paga impostos embutidos até no pãozinho, vive em periferias sem saneamento. E quem colhe os frutos? Em geral, as mesmas famílias brancas que controlam bancos, latifúndios e empresas há séculos — e ainda contam com políticos amigos para escrever leis sob medida. Não é acaso: é um projeto histórico.
Heranças: o elevador social exclusivo
O Brasil tem uma das menores taxações de herança do mundo. Aqui, a alíquota varia entre 4% e 8%, dependendo do estado. Para ter uma ideia do absurdo, na França o imposto pode ultrapassar 60%, e nos Estados Unidos chega a 40%. Ou seja: enquanto boa parte do planeta entende que heranças precisam ser reguladas para não concentrar poder indefinidamente, o Brasil protege com unhas e dentes o direito do rico continuar rico — e do filho do rico nascer milionário sem precisar mover um dedo.
É por isso que nomes como Moreira Salles (controladores do Itaú Unibanco) seguem no topo da pirâmide. Seus herdeiros dividem bilhões através de holdings e blindagens jurídicas, multiplicando o patrimônio ano após ano. Os Setúbal, também donos do Itaú, integram o mesmo ecossistema. Não trabalham por salário: vivem do rendimento de aplicações e da valorização das ações bancárias que herdaram.
Outro exemplo gritante são os Marinho, donos da Globo. A fortuna familiar foi edificada com concessões públicas de rádio e TV que remontam à ditadura militar, quando o regime precisava de um megafone para seus projetos autoritários. Hoje, figuram entre os mais ricos do país, mantendo o monopólio da comunicação e, por consequência, do imaginário nacional.
Terras: o latifúndio como herança colonial
A história do Brasil é inseparável da história da terra — e da forma como ela foi distribuída. Desde as capitanias hereditárias, passando pelas sesmarias, pelas grilagens e pelos “presentes” dados a coronéis e aliados políticos, o latifúndio construiu não apenas a paisagem agrícola, mas o próprio DNA das elites.
Os Maggi, por exemplo, são donos de milhões de hectares no Mato Grosso. O patriarca André Maggi foi um dos maiores produtores de soja do mundo, e o filho, Blairo Maggi, fez carreira como governador e ministro. Terra barata, crédito farto do BNDES e incentivo fiscal montaram esse império. A conta ambiental (desmatamento, contaminação por agrotóxicos, conflitos com povos indígenas e camponeses) fica para o resto do país pagar.
Em São Paulo, a família Quércia construiu um patrimônio imobiliário gigantesco, amarrado a décadas de contratos públicos. Orestes Quércia foi governador, controlou licitações, investiu em loteamentos e torres comerciais. Hoje, o Grupo Sol Panamby (da família Quércia) administra shoppings, edifícios corporativos e fazendas.
No Nordeste, nomes como Sarney e Caiado mostram como a política e o latifúndio caminham de mãos dadas. José Sarney transformou o Maranhão num feudo familiar. Ronaldo Caiado, atual governador de Goiás, representa o setor agropecuário há décadas, herdeiro direto do ciclo do gado que arrancou terras de comunidades tradicionais. Terra no Brasil não é só chão: é símbolo de poder político e controle social.
Bancos: o coração do rentismo
Se tem um setor que nunca perde no Brasil, é o bancário. Juros estratosféricos, spreads abusivos e taxas até para respirar fazem do sistema financeiro o verdadeiro mandachuva da economia. Não importa se o PIB cai, se a inflação explode ou se milhões estão desempregados: bancos sempre batem recorde de lucro.
Por trás dessas instituições estão, adivinhe, famílias que fazem parte do mesmo círculo de poder há gerações. O Bradesco, por exemplo, nasceu pequeno mas foi estruturado por Amador Aguiar e seu círculo, que moldaram o banco para ser uma máquina de gerar dividendos para acionistas. Hoje, o controle é pulverizado entre grandes investidores, mas o espírito permanece: rentismo puro.
O Banco Safra carrega o nome da família que o criou. Após a morte de Joseph Safra, os filhos herdaram uma das maiores fortunas do planeta, operando fundos, carteiras de crédito e investimentos globais. A lógica é simples: o dinheiro dos ricos trabalha sozinho, multiplicando-se em offshores e ações, enquanto o pobre paga empréstimos a juros de agiota para sobreviver.
Política: quem faz as leis?
Nenhum desses mecanismos se manteria sem uma política domesticada. Bancos financiam campanhas eleitorais, latifundiários elegem bancadas inteiras, grupos de comunicação constroem ou destroem reputações conforme seus interesses. O Congresso brasileiro é reflexo direto desse arranjo.
Quando falamos em reforma tributária, taxação de grandes fortunas ou revisão do ITCMD (imposto sobre heranças), a resistência é imediata. Não é coincidência. Muitos deputados e senadores têm parentes donos de terras, bancos, empreiteiras ou grandes redes varejistas. Outros são eles mesmos latifundiários, banqueiros ou herdeiros.
A chamada bancada ruralista é o maior exemplo: políticos que não representam “o agro” genérico, mas interesses muito específicos de quem concentra hectares, recebe isenção fiscal bilionária e exporta commodities enquanto comunidades inteiras passam fome. E, claro, o mesmo vale para o lobby dos bancos, que consegue segurar qualquer tentativa de tributar lucros e dividendos — algo que países desenvolvidos já fazem há décadas.
O fator racial: por que as elites são quase todas brancas?
Nada disso é “meramente econômico”. É um projeto também racial. Durante mais de 300 anos, pessoas de ascendência africana foram escravizadas no Brasil para garantir lucros a uma minoria branca. Mesmo após a abolição formal, leis de terras e políticas de imigração europeia ajudaram a branquear a posse de propriedades e negócios.
Hoje, menos de 20% das pessoas pretas ou pardas alcançam o topo da pirâmide salarial, segundo o IBGE. E quando olhamos quem são os donos das grandes fazendas, bancos, canais de TV e holdings imobiliárias, a cor é praticamente a mesma. A riqueza no Brasil tem sobrenome e tem cor. Isso não é acaso histórico: é a continuação do colonialismo por outros meios.
Heranças blindadas, terras concentradas, bancos intocáveis
Esse é o tripé que mantém a estrutura de privilégios no Brasil. Enquanto isso, o trabalhador comum paga impostos regressivos, arca com a inflação dos alimentos e ainda escuta que “não enriquece porque não se esforça o suficiente”.
A meritocracia brasileira é, em grande medida, uma farsa montada para manter as coisas como estão. Grandes fortunas não são construídas apenas com trabalho duro; são perpetuadas por regras feitas sob medida, por conexões políticas profundas e por uma máquina financeira que recompensa quem já tem.
No fim das contas, o Brasil parece um gigantesco condomínio fechado. Quem nasceu dentro dos muros blindados — cercados por heranças, terras e bancos — vive em outra realidade. Do lado de fora, a maioria luta diariamente por dignidade, muitas vezes carregando nos ombros o peso da história que construiu o império dos outros.