Não há erro em cortar laços familiares. Repito: não há erro em se afastar de parentes que perpetuam padrões de sofrimento, manipulação e abuso emocional. O erro está na ideia romantizada de que laços de sangue justificam tudo, inclusive a perpetuação da dor. O erro está em acreditar que porque alguém te criou, tem o direito de te ferir. Isso não é amor, isso é condicionamento.
Nossa sociedade cultiva um modelo falido de lealdade familiar, onde é esperado que se mantenha relações adoecidas apenas porque “família é família”. Mas a verdade, nua e crua, é que você não tem obrigação de carregar as dores da sua linhagem. Você não tem que ser o depósito das frustrações de quem veio antes de você. Nem precisa repetir os traumas de seus pais.
A epigenética já demonstrou que carregamos, biologicamente, não apenas as características físicas dos nossos antepassados, mas também traumas, padrões emocionais e até respostas químicas ao estresse. O estudo de Rachel Yehuda, pesquisadora do Mount Sinai School of Medicine, revelou que descendentes de sobreviventes do Holocausto carregam traços genéticos de estresse pós-traumático, mesmo sem terem vivido os eventos. O mesmo acontece com descendentes de povos escravizados: a dor histórica molda as respostas do nosso organismo ao mundo.
Mas aqui está o ponto fundamental: isso não é uma condenação. O que herdamos pode ser ressignificado. A neuroplasticidade – outro avanço da ciência moderna – comprova que o cérebro não é estático. Padrões podem ser quebrados.
A violência como herança do sistema colonial
Entre os padrões mais enraizados e destrutivos na sociedade brasileira está a cultura da violência como método de educação. O famoso “apanhei e não morri” não é apenas uma frase solta. Ele carrega dentro de si uma mentalidade forjada sob os grilhões da escravidão.
Essa ideia de que a agressão física educa vem diretamente da estrutura de castigo e opressão a que nossos ancestrais foram submetidos. Na senzala, os açoites não eram apenas punições, mas sim um método para quebrar a vontade do indivíduo, para torná-lo obediente, para ensiná-lo a não questionar.
E o que acontece quando uma sociedade inteira é moldada sob esse modelo? O ciclo se repete. O escravizado que sobreviveu ao chicote criou seus filhos com a rigidez que conhecia. O colono europeu, por sua vez, também foi condicionado à lógica do castigo como controle social. E assim, de geração em geração, pretos e brancos foram doutrinados a ver na dor um instrumento de correção.
Hoje, a ciência desmonta esse mito. Estudos na American Psychological Association indicam que crianças submetidas a castigos físicos desenvolvem níveis mais altos de cortisol (hormônio do estresse), tornando-se adultos mais propensos a depressão, ansiedade e comportamento agressivo. O famoso “foi só uma palmada” deixa marcas profundas no sistema nervoso.
A sociedade brasileira é o reflexo dessa história. A violência doméstica, a brutalidade policial, a impunidade para agressores e a crença na correção pelo medo são sintomas do mesmo vírus social. Mas quem disse que você precisa perpetuar essa doença?
A ilusão da culpa e a prisão mental
Muitos passam a vida prisioneiros do passado, repetindo mentalmente os abusos que sofreram, culpando os pais, culpando o destino. Mas aqui está uma verdade brutal: culpar eternamente a sua origem não muda seu presente.
Se você acorda todos os dias repetindo a narrativa do que sofreu, está fortalecendo essa realidade dentro de você. O trauma só tem poder enquanto você o alimenta.
Isso significa ignorar o passado? Não. Significa compreendê-lo, ressignificá-lo e, acima de tudo, não se tornar refém dele.
Quando eu olho para minha própria história, vejo um caminho que poderia ter me aprisionado. Fui expulso de casa aos 13 anos. Cresci sozinho, sem o suporte de uma estrutura familiar que me protegesse. Mas eu fiz uma escolha: não repetir o discurso da vítima.
Entender que meus pais também foram produtos de um sistema maior me permitiu quebrar o ciclo. Isso não significa que precisei manter contato com eles. Perdoar não significa permanecer. Perdoar significa se libertar de forma mental! Não é sobre passar pano e fingir que nada aconteceu!
Espero ter ajudado!