Conheça as 33 autoridades brasileiras que têm antepassados escravocratas

A história explica muito do presente. No Brasil, onde o passado escravocrata moldou não apenas a sociedade, mas também as estruturas de poder, um dado revela a persistência dessas raízes: 33 autoridades brasileiras, entre ex-presidentes, senadores e governadores, têm antepassados diretamente ligados à escravidão.

Essa conexão histórica, revelada pelo Projeto Escravizadores, uma investigação inédita da Agência Pública, traz à tona uma questão essencial: como as elites políticas do país, que frequentemente determinam os rumos da nação, carregam em sua ancestralidade relações com um sistema de opressão que marcou profundamente o Brasil.

O estudo analisou os antecedentes de 116 autoridades do Executivo e Legislativo para identificar vínculos com o uso de mão de obra escravizada. O resultado é contundente: ao menos 33 delas descendem de pessoas que exploraram o trabalho escravo. Para muitos desses políticos, a descoberta é uma novidade, já que não mantêm laços próximos com suas linhagens ou desconheciam completamente sua origem.

Africanas escravizadas com vassouras de Bambusa em 1877.

A investigação não apenas expõe as relações históricas da classe política com a escravidão, mas também nos leva a refletir sobre as continuidades das desigualdades estruturais que ainda persistem no país.

A presença de autoridades brasileiras com antepassados ligados à escravidão expõe um dado preocupante sobre a continuidade das estruturas de poder no país. Revela-se, mais uma vez, como a elite política está profundamente enraizada em um passado que perpetuou desigualdades sociais e raciais. Essa conexão histórica é mais do que uma curiosidade genealógica; ela escancara a dificuldade do Brasil em romper com um sistema construído sobre a exploração e o privilégio.

Entre os oito presidentes do Brasil que governaram após o fim da ditadura militar, quatro – José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso – têm vínculos familiares diretos com o sistema escravocrata. Esses líderes, que moldaram políticas e decisões de impacto nacional, carregam uma ancestralidade que os conecta às estruturas de opressão que marcaram o Brasil colonial e pós-colonial.

Africanos escravizados, Virgínia, EUA, 1878

No Senado Federal, a situação também é alarmante: 16 dos 81 senadores, ou 20% da Casa, compartilham esse mesmo passado. Entre eles estão nomes de grande influência, como Augusta Brito (PT-CE), Carlos Portinho (PL-RJ), Cid Ferreira Gomes (PSB-CE) e Ciro Nogueira (PP-PI), além de outros políticos de destaque nacional. Já entre os governadores estaduais, quase metade – 13 dos 27 – possuem ascendência ligada à escravidão. Isso inclui figuras como Romeu Zema (Novo-MG), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Helder Barbalho (MDB-PA).

Esses números não apenas demonstram a relação íntima entre poder político e privilégios históricos, mas também reforçam como as hierarquias raciais do passado continuam a moldar o presente. É grave perceber que aqueles que ocupam as mais altas esferas de poder são, em muitos casos, herdeiros diretos de uma elite que se beneficiou do trabalho escravizado, enquanto a população negra, descendente de pessoas escravizadas, ainda enfrenta barreiras estruturais para acessar os mesmos espaços.

Mais preocupante ainda é o desconhecimento ou desconexão de muitos desses políticos em relação a suas próprias origens. Isso reflete uma tendência de apagar ou minimizar a história da escravidão no Brasil, dificultando um debate sincero e necessário sobre as heranças desse período. Sem um enfrentamento crítico dessa realidade, o país corre o risco de perpetuar desigualdades que deveriam ter sido superadas há muito tempo.

Africanos escravizados no interior do Rio de Janeiro, 1885

Trabalho Escravizado: Das Plantações às Casas e ao Comércio

Os vínculos dos antepassados de autoridades brasileiras com a escravidão são diversos e impactantes. O tataravô do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foi o coronel José Manoel da Silva e Oliveira, nascido por volta de 1771 em Minas Gerais. Esse militar teve papel de destaque na exploração de ouro nas antigas capitanias de Minas e Goiás. Registros históricos indicam que ele utilizou pessoas escravizadas em expedições para identificar novos locais de mineração, nas quais muitos acabaram morrendo tragicamente devido a doenças durante o percurso.

A investigação revelou múltiplos casos de antepassados de políticos que exploraram o trabalho escravizado em plantações, desde o cultivo e a colheita de cana-de-açúcar até a produção de algodão e fumo, especialmente na região do Recôncavo Baiano.

Também há registros de pessoas escravizadas que trabalhavam no ambiente doméstico, cuidando de idosos e realizando tarefas nas casas de seus senhores, conforme descrito em testamentos da época. Além disso, algumas acompanhavam seus escravizadores em viagens, enquanto outras eram compradas, vendidas ou até alugadas para diferentes serviços. Os documentos revelam a brutalidade sistêmica da escravidão, destacando como ela permeou as estruturas econômicas e sociais que sustentaram essas famílias.

É aqui muito importante dizer que a escravidão no Brasil não estava restrita apenas aos grandes proprietários de terras. Comerciantes, pequenos agricultores e até pessoas com propriedades destinadas exclusivamente ao consumo próprio ou ao comércio local também mantinham pessoas escravizadas. “Muitas vezes, essas propriedades não eram voltadas para a exportação, mas ainda assim contavam com um ou dois escravizados que realizavam o trabalho necessário,” explica a historiadora e educadora social Joana Rezende.

Ela acrescenta que a exploração ia além do trabalho agrícola. “Muitas pessoas possuíam escravizados que, por exemplo, eram alugados para terceiros, para outras propriedades. Havia diversas formas de, digamos, explorar um escravizado, não apenas no contexto das plantações ou lavouras.” Essas práticas revelam a amplitude e a complexidade do sistema escravista, que permeava todas as camadas sociais e econômicas da época.

Fernando Henrique Cardoso

O Estado brasileiro é cúmplice de um crime que atravessa os séculos e permanece ativo em sua estrutura. A escravidão, mais do que um sistema econômico, foi a ferramenta de desumanização completa, o ato fundador de uma nação edificada sobre a aniquilação do corpo negro. Esse crime, porém, não se encerrou com a assinatura de leis que fingem conceder liberdade enquanto perpetuam o encarceramento econômico, social e psicológico dos descendentes de pessoas escravizadas. A dívida do Brasil com o povo negro não é apenas histórica; é presente, viva, e ecoa nos grilhões invisíveis que ainda prendem milhões à miséria e à exclusão.

A reparação, no entanto, não pode ser vista como um favor ou um gesto benevolente do opressor. É uma exigência ética e política. A escravidão não foi um erro acidental, mas o projeto central do Brasil colonial e republicano, um esquema minuciosamente planejado para lucrar com a carne negra. O Estado, enquanto instituição, é herdeiro direto desse projeto e, portanto, carrega a responsabilidade de desmontar as estruturas que a escravidão construiu: a desigualdade, o racismo institucional, a violência policial e o abandono da população negra.

E ainda assim, o Brasil insiste em negar essa dívida. A narrativa oficial celebra uma abolição que não libertou, enquanto os descendentes de escravizados continuam relegados às margens, sobrevivendo em favelas, prisões e empregos precários. O mito da democracia racial, tão ardilosamente construído, funciona como a máscara do racismo, obscurecendo a perpetuação da violência. Mas a dívida não pode ser apagada por discursos que pedem paciência, nem pelas promessas vazias de inclusão que não atacam as raízes do problema.

A reparação exige mais do que políticas públicas paliativas. É necessário desconstruir a fundação do Estado, expor suas entranhas e enfrentar as estruturas que ainda operam como mecanismos de exploração. Enquanto o povo negro for encarado como massa de trabalho descartável ou objeto de repressão, a dívida permanecerá aberta e o Estado brasileiro continuará a ser um monumento à injustiça.

 

Frantz Fanon diria que não há neutralidade possível diante de tal crime. Ou o Estado reconhece sua responsabilidade e age para desmantelar o racismo em suas mais variadas formas, ou continuará sendo o cúmplice de um genocídio lento e silencioso. Para reparar essa dívida, é preciso reescrever o Brasil, começando pelo reconhecimento do que ele realmente é: uma nação forjada pelo sangue e pela resistência de corpos negros. A luta por justiça não é um pedido, mas uma convocação para que a ferida seja tratada de uma vez por todas, com a radicalidade que a história exige.

Fonte: Projeto Escravizadores. 

Texto: Wanderson Dutch.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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