Na última terça-feira, durante a gigantesca operação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) nos complexos do Complexo do Alemão e da Complexo da Penha — considerada até agora a mais letal da história carioca — correu pelas redes um boato com força viral: a morte de uma mulher conhecida como “Japinha do CV”. Mas, segundo documentos oficiais e investigação preliminar, não há confirmação de que ela esteja entre os mortos.
O contexto: mega-operação, caos e mortos
A operação, batizada informalmente como Operação Contenção, teve como alvo a facção Comando Vermelho (CV) e seus tentáculos nos territórios da zona norte do Rio de Janeiro. Estima-se que mais de 2.500 agentes participaram da ação, com uso de blindados, helicópteros, mandados de prisão em curso (alguns fora do estado) e centenas de vítimas fatais — entre civis, suspeitos, e policiais.
Em meio a essa turbulência, imagens começaram a circular nas redes sociais com alegações de que “Japinha do CV” teria sido alvejada — e morta — durante o confronto. A narrativa tomava corpo rápido: corpo feminilizado, rostos divulgados, repercussão imediata.
Quem é “Japinha do CV”?
De acordo com investigações preliminares, “Japinha”, também chamada de Penélope, era apontada pela polícia como integrante de confiança da facção CV, atuando na “linha de frente” da organização, em rotas de fuga ou defesa de pontos de venda de drogas.
Nas redes sociais, ela já era personagem de ostentação — armas, dinheiro, presença — o que intensificava a atenção na mídia e alimentava a ficção que circulava: da musa do crime ao mito urbano.
O boato espalha-se — e a polícia reage
Com o avanço das redes, a divulgação de uma foto — mostrando um corpo feminino baleado — desencadeou a avalanche de “Ela morreu”: legendas, mensagens, compartilhamentos. Mas a PCERJ, ao divulgar oficialmente os nomes dos mortos e identificados, não incluiu nenhum nome feminino. Todos os corpos com identificação eram de homens.
Ou seja: o boato tomou vida própria. O aparato estatal, em meio ao caos, não confirmou a presença de “Japinha” entre os mortos. A própria família, segundo reportagem, pediu que se interrompesse o compartilhamento das imagens.
Por que essa divergência é importante?
Primeiro, porque expõe a velocidade com que a desinformação opera no ambiente digital — sobretudo em conjunturas de violência, operação policial e interesses midiáticos. Um corpo aparece, logo se associa a um nome. Uma legenda viraliza. E o “mistério” torna-se notícia.
Segundo, porque há uma questão de direitos humanos envolvida: vidas em território conflagrado, corpos não identificados, ausência de transparência. A família que solicita respeito à dor. A polícia que divulga números, mas não sempre nomes. A mídia que pressiona.
Terceiro, porque a narrativa da “morte da Japinha” cumpre um duplo papel simbólico: de um lado, reforça o imaginário da mulher “musa do crime” que cai no confronto; de outro, serve à facção como instrumento de intimidação ou mito urbano — e à polícia como aviso de que avançou onde poucos ousaram. Ao final, quem paga são as vidas, os corpos, as famílias.
O que sabemos até agora — e o que permanece em aberto
Sabemos:
- A operação resultou em dezenas (alguns relatos falam em mais de 100) de mortos e manifesta-se como uma das mais letais confrontações no Rio.
- A jovem conhecida como “Japinha do CV” é considerada pela polícia como integrante de alto risco da facção, mas não há confirmação oficial de que ela tenha morrido na operação.
- A lista de nomes divulgada pelas autoridades não inclui nenhuma mulher até agora, segundo reportagem da mídia.
- O compartilhamento de imagens e boatos compromete o processo de identificação e traz impacto direto à família e à comunidade.
Permanecem em aberto:
- A identificação completa dos mortos — mais de 100 corpos aguardam exames, alguns alunos de fora do estado, dificultando a checagem.
- A verificação se de fato “Japinha” está viva, presa, ou desaparecida. A ausência de seu nome na lista não significa automaticamente que está fora do evento, apenas que não foi oficialmente reconhecida até o momento.
- A origem das imagens que circulam — como elas foram obtidas, quem as distribuiu, se o corpo é mesmo dela ou de outra pessoa.
- O impacto mais amplo da operação: implicações jurídicas, humanitárias, de segurança pública e de combate às facções nos territórios conflagrados.
O que isso nos diz — e o que devemos perguntar
Essa situação particular gera várias reflexões:
- Qual o papel das redes sociais no espalhamento de narrativas de violência? Quanto disto é fato, quanto é mito, quanto é política de imagem?
- Qual o impacto de tal narrativa para as famílias envolvidas — no luto, na exposição, no estigma?
- Em operações de segurança pública desse porte, como equilibrar agressão ao crime organizado com direitos fundamentais, transparência, identificação e responsabilização?
- Como a criminalização da mulher, da “musa do crime”, reforça estereótipos de gênero, hipersexualização, representação da mulher negra ou periférica na lógica do poder-violência?
- E por fim: o que nos leva a crer “porque queremos acreditar” — que “Japinha está morta” ou “Japinha foi derrotada” — e o que isso revela de nossa insistência em narrativas simples para realidades complexas?

