A arquitetura do pan-africanismo foi erguida com as pedras de um mundo esfacelado pelo imperialismo e pelo sequestro ontológico promovido pela modernidade branca. Desde os primeiros discursos de Garvey até os escritos incendiários de Fanon, esse movimento sempre propôs a reconexão com uma identidade fragmentada pela violência colonial. Seu cerne é a reconquista do ser, a retomada de uma dignidade negada e o redesenho de um mundo onde corpos racializados possam habitar o tempo com soberania.
Porém, há um cisma que persiste. Um incômodo que pulsa como ferida aberta: por que tantos discursos pan-africanistas seguem reproduzindo uma homofobia atávica, muitas vezes violenta? Como pode um projeto de libertação radical ainda se apoiar em estruturas morais herdadas dos mesmos sistemas que diz combater? Qual é o custo de manter a sexualidade dissidente fora da narrativa da emancipação?
É necessário desmontar o mito de que as expressões de gênero e sexualidade não normativas seriam “invenções ocidentais”. Diversas cosmologias africanas, antes da violenta ingerência colonial, reconheciam pluralidades sexuais e existências não binárias com naturalidade. Sacerdotisas que performavam o masculino, entidades espirituais que incorporavam gêneros fluidos, relações afetivas entre iguais: esses elementos estavam presentes e, em muitos casos, integravam o tecido simbólico de coletividades diversas.
Foi o colonialismo que redesenhou esse mapa. Sob a bíblia e a espada, os impérios europeus impuseram uma epistemologia binária, patriarcal e repressiva, alicerçada em uma moral sexual rigidamente heterossexual. Ao lado disso, houve o deslocamento de saberes ancestrais e a patologização de tudo que não servia ao projeto de humanidade utilitária para o capital.
Avançando para o século XXI, ainda assistimos ao aprofundamento dessa fratura. Países como Uganda, Nigéria, Tanzânia e Gâmbia adotam legislações que não apenas criminalizam, mas demonizam pessoas LGBTQIA+. Em nome da “moral africana” (paradoxo carregado de ironia), lideranças políticas e religiosas consolidam um projeto de controle corporal que nada tem de autônomo: é a continuidade dos dispositivos coloniais, apenas com nova roupagem.
Mas onde está o pan-africanismo nesse enredo? Em muitos casos, está omisso. Em outros, é cómplice. A defesa de uma identidade africana “pura”, desvinculada de influências ocidentais, muitas vezes se ancora num ideal moral conservador que exclui existências dissidentes. Essa exclusão é a prova de que não se trata apenas de questão cultural, mas de uma disputa ontológica sobre quem pode ser incluído no projeto de futuro africano.
É preciso nomear: essa homofobia pan-africanista é um ruído colonial internalizado. Um algoritmo ideológico que perpetua o epistemicídio queer, que expulsa corpos complexos do sonho de libertação. Um pan-africanismo que se recusa a integrar o desejo, a fluidez e o afeto não normativo é, na verdade, uma forma de ortodoxia reacionária mascarada de radicalismo.
Como imaginar um continente (e uma diáspora) verdadeiramente liberto se parte de seus filhos e filhas seguem sendo caçados por amar ou existir fora da norma? Como pode a reconstrução simbólica de um povo ser plena se expulsa parte de seus membros com base em doutrinas que nem sequer lhe pertencem em origem?
O caminho para uma decolonização verdadeira passa pelo reconhecimento das existências queer como parte fundante da identidade africana. É preciso resgatar a memória antes da mutilação colonial, reencantar as epistemologias ancestrais que celebravam a pluralidade. E sobretudo, é preciso desarticular o pacto entre pan-africanismo e moralismo sexual, um casamento forjado no trauma e mantido pelo medo.
As vozes que rompem esse silêncio já existem. Bisi Alimi, Tatenda Ngwaru, Akwaeke Emezi e tantos outros corpos que caminham na linha do fogo, sustentando contradições sem se desmanchar. Eles são mais que sobreviventes: são cartógrafos do porvir. São quem aponta para um pan-africanismo de oitava dimensão, onde ancestralidade e desejo não são antagônicos, mas alianças.
A verdadeira insurreição exige a expansão do amor. Amor como tecnologia de cura, como desobediência política e como reprogramação simbólica. Não se trata de tolerar. Trata-se de reconhecer: a existência queer africana não é exceção, é patrimônio. É tempo de reintegrar ao sonho libertário todos os corpos, todos os desejos, todas as memórias.
Sem isso, todo pan-africanismo será apenas uma gaiola com nome bonito.