A busca por importância acompanha a humanidade desde sempre. Cada sociedade, à sua maneira, ergueu símbolos para distinguir quem “foi alguém”: nomes em pedras, títulos em pergaminhos, fotos em paredes. Esse impulso não precisa ser lido como uma falha. O ego deseja reconhecimento porque é parte do jogo: ele é ator no teatro da vida, e como todo ator, pede cena. Não é uma questão de demonizar esse movimento, mas de compreendê-lo. A vida é múltipla e, assim como há prazer em ser alguém, existe também um prazer ainda mais misterioso e profundo: o de ser ninguém.
Ser ninguém não é desaparecer, não é negar a própria existência. É simplesmente descansar do peso da importância. É descobrir que o valor de viver não precisa estar atrelado ao olhar dos outros. Um nome pode abrir portas, mas o silêncio também pode abrir horizontes. Há uma alegria suave em não precisar provar nada, em não carregar títulos como escudos. Esse prazer não é menos digno do que o brilho da fama — apenas outro caminho.
No pensamento ancestral africano — aquele que existia antes da colonização, antes das distorções brancas que tentaram reduzir sua grandeza — a vida não se media por notoriedade individual. O ser humano era entendido como parte de uma rede cósmica, atravessado por axé, sustentado pela comunidade e pelos ancestrais. O orixá não precisa de plateia para ser sagrado. Ele é porque vibra, porque sustenta a energia da vida. O valor não está em ser alguém isolado, mas em ser fluxo, em continuar o movimento do todo.
O Egito antigo também nos deixou essa lição. Na filosofia de Maat, a medida da vida não era a glória acumulada, mas a leveza do coração. Quando Osíris pesava o coração dos mortos contra a pena da verdade, não estavam em jogo títulos, conquistas ou fama, mas o simples equilíbrio. Um coração leve é aquele que não se aprisionou à vaidade. Essa leveza não é ausência de ego, mas harmonia: permitir que o ego seja ator sem se confundir com a peça inteira.
O ego como personagem, não como inimigo
O erro do Ocidente moderno foi transformar o ego em tirano ou em inimigo. Nem uma coisa, nem outra. O ego é função: ele organiza, distingue, interpreta, representa. Ele deseja importância porque isso faz parte do papel que desempenha. O problema surge quando confundimos o palco com a vida, a máscara com o rosto. Nesse ponto, esquecemos que o espetáculo termina e acreditamos que só existimos se a plateia aplaudir. Ser ninguém é simplesmente a coragem de sair do palco sem se sentir menor por isso.
Buda apontava para esse mesmo horizonte ao ensinar que o sofrimento nasce do apego ao “eu” fixo. Não se trata de destruir o eu, mas de perceber que ele não é sólido como imaginamos. É passagem, é vento, é fluxo. Quando desapegamos da necessidade de ser constantemente lembrados, descobrimos um espaço interior de liberdade. Yogananda dizia que a maior vitória é sobre o próprio eu: não para apagá-lo, mas para não ser escravo dele.
Krishna, no Bhagavad Gita, ensinou a Arjuna que a ação correta não precisa de reconhecimento. O guerreiro deve agir de acordo com o dharma, não pela glória. É uma lição preciosa: podemos atuar no mundo com intensidade, podemos realizar grandes feitos, mas sem aprisionar o coração na obsessão por aplauso. O prazer de ser ninguém é exatamente isso — agir por coerência, não por fama.
Krishnamurti, com sua clareza cortante, dizia que a mente só é capaz de conhecer a verdade quando se liberta da busca por status. Essa busca é ruído. No silêncio, no esvaziamento das expectativas, surge o espaço para o real. E é nesse espaço que habita a leveza de ser ninguém: quando não precisamos mais da aprovação do outro para saber que somos.
O prazer como liberdade
O prazer de ser ninguém não é renúncia, mas liberdade. É perceber que podemos ser alguém quando necessário — o personagem do ego no palco — e podemos ser ninguém quando escolhemos descansar da peça. Essa alternância é saudável. A semente precisa desaparecer no escuro da terra para se tornar árvore; o rio precisa correr silencioso entre pedras antes de chegar ao mar. Assim também nós precisamos da experiência do anonimato para florescer de maneira inteira.
Colonizar não foi apenas invadir territórios; foi impor uma forma de medir a existência. O africano passou a ser obrigado a provar humanidade diante do olhar europeu. O oriental passou a ser reduzido a objeto exótico. Essa violência deixou marcas que persistem até hoje: já não basta ser, é preciso ser visto. O prazer de ser ninguém, nesse contexto, é gesto político de descolonização. É recusar a exigência de provar valor no tribunal do olhar alheio.
Quando resgatamos essa leveza, a arte retoma seu sentido mais profundo. O tambor africano não batia para uma plateia, mas para conectar mundos. A dança não era espetáculo, mas oração. A meditação não era fuga, mas reencontro. Em todas essas práticas, a pessoa não precisava ser estrela: bastava ser veículo. O prazer estava em permitir que a vida fluísse através de nós, sem necessidade de carimbo ou assinatura.