O Pacto da Branquitude: O silêncio cúmplice que sustenta o racismo estrutural.

Você já se perguntou por que, mesmo diante de tantas evidências, tantos brancos progressistas se calam? Ou melhor: por que, diante de injustiças raciais explícitas, a maioria dos brancos que se dizem aliados simplesmente recuam, desviam o olhar ou preferem “não se envolver”? A resposta é simples, incômoda e profundamente real: o pacto da branquitude existe — e segue ativo, silencioso e letal.

O termo “pacto narcísico da branquitude” foi cunhado pela psicanalista brasileira Maria Aparecida Bento para explicar a engrenagem invisível que sustenta o racismo institucional. Trata-se de um acordo tácito entre pessoas brancas para preservar seus privilégios — mesmo que isso custe a dignidade, a liberdade ou a vida de pessoas negras. É uma fidelidade ao grupo racial branco acima da ética, da justiça e da empatia. Esse pacto não é escrito, mas é seguido com disciplina exemplar.

A neutralidade branca é uma farsa

O grande trunfo do pacto da branquitude é sua capacidade de se esconder atrás da “neutralidade”. A frase “não sou racista” virou um escudo moral que muitos usam para fugir da responsabilidade de agir. Mas o racismo não se combate apenas com a ausência de agressão — ele exige enfrentamento. E quem se cala diante da injustiça não é neutro — é cúmplice.

Na prática, a neutralidade branca serve para manter tudo como está: salários mais altos, ausência de revista policial, liberdade para errar sem ser criminalizado, maior expectativa de vida, acesso à saúde, aos espaços de poder e à história contada a partir do seu ponto de vista. Esses privilégios não são coincidência. São estruturas.

Quando o cerco fecha, o branco escolhe a sua cor

É fácil para o branco progressista postar uma arte no Instagram no Dia da Consciência Negra. É confortável dizer “vidas negras importam” depois do assassinato brutal de George Floyd — que gerou comoção global. Mas o teste real não está no post. Está na prática. Está no silêncio durante uma reunião quando um colega preto é interrompido. Está na recusa em dividir poder. Está em não abrir mão de privilégios concretos em nome de uma sociedade mais justa.

E é aí que o pacto se revela. Porque quando o cerco fecha, o branco progressista protege o sistema que o protege. A retórica de aliança vira silêncio. A solidariedade vira hesitação. O antirracismo vira retórica vazia. E a cor da pele volta a funcionar como escudo — não importa o discurso.

O racismo precisa da cordialidade branca

O pacto da branquitude não é violento apenas nas suas omissões. Ele também atua por meio da cordialidade hipócrita. Sorrisos, elogios vazios, convites simbólicos — tudo isso funciona como verniz. A branquitude aprendeu a parecer inclusiva sem ceder espaço real. Aprendeu a aplaudir a diversidade desde que ela não ameace sua hegemonia.

Quantas pessoas brancas você conhece que falam de diversidade, mas nunca colocaram um preto como sócio, como líder, como referência intelectual? Quantas que consomem cultura preta, dançam funk, usam tranças, fazem aula de ioga com referências africanas, mas se calam diante do genocídio da juventude preta?

Isso não é aliança. É apropriação estética combinada com neutralidade cúmplice. É usar a cultura preta enquanto protege o sistema que mata quem a criou.

O pacto se fortalece na escola, no judiciário, no RH

O pacto da branquitude está em todo lugar. Está na universidade pública que continua majoritariamente branca mesmo em um país com mais de 50% da população preta e parda. Está no judiciário que julga com mais rigor quando o réu tem pele escura. Está no RH das empresas, que seleciona quem “se comunica melhor” (leia-se: quem performa a branquitude). Está nos influenciadores brancos que crescem em cima de pautas sociais, lucrando com o engajamento das dores alheias.

E está também nos “amigos” que dizem: “mas você é diferente, não é como os outros”, “não vejo cor, vejo pessoas”, ou “tem que ver os dois lados”. A branquitude se protege até no discurso aparentemente inocente.

E se houvesse um pacto dos pretos reconhecendo-se como africano em diáspora?

E se ao invés de disputar migalhas no sistema que nos nega, nós nos olhássemos como parte de um mesmo corpo?

Se não fôssemos mais apenas brasileiros, americanos, haitianos, franceses, cubanos, mas africanos em diáspora?

E se esse reconhecimento não fosse apenas político, mas espiritual, ancestral e vibracional?

Porque o que nos separa não é apenas o Atlântico. É a mentira contada por séculos, dizendo que fomos arrancados de lá e jogados aqui como nada. Que nossa história começou no porão de um navio. Que nossa origem é sofrimento.

Mas a nossa história começou no trono. Começou nos templos, nas aldeias, nas florestas, nos altares, nos reinos.

Antes do trauma, houve realeza. Antes do chicote, houve sabedoria. E é isso que o sistema teme: que a diáspora africana se lembre.

A maior tragédia foi a desmemória

A escravidão não foi só uma ferida física. Foi um projeto de aniquilação da memória. Apagar os nomes, os idiomas, os orixás, as filosofias, os saberes, as cosmologias. Fazer com que um africano nascido no Brasil se sentisse só preto. Só corpo. Só número. Só mão de obra.

Mas existe algo que atravessa o tempo, mesmo em silêncio.

Está no ritmo do tambor que pulsa nos nossos peitos.

Na culinária que resiste nas panelas.

No cuidado das mais velhas.

Na fé que sobrevive nas encruzilhadas.

Nos nossos cabelos, nossas gírias, nossa dança, nosso estilo.

A cultura negra é o que sobrou da África quando tudo foi tirado.

E ainda assim ela vibra.

A diáspora é ferida, mas também é ponte.

O reencontro não será feito por aviões — será feito por consciência

Não precisamos embarcar num voo para Lagos, Acra, Luanda ou Maputo para sermos africanos.

Precisamos apenas aceitar a verdade que foi escondida:

nós somos África reencarnada em outros territórios.

Somos o prolongamento do continente que tentaram arrancar de nós. Somos a memória viva de civilizações que o mundo tentou apagar.

E é justamente por isso que precisamos de um outro tipo de aliança.

Não um pacto formal. Mas uma aliança espiritual entre os pretos do mundo inteiro.

Uma consciência partilhada:

de que somos os filhos e filhas da Terra original.

De que somos os descendentes dos construtores das pirâmides.

Dos astrônomos, dos mestres em cura, dos matemáticos de Timbuktu, dos reis do Mali, dos guerreiros de Angola, das mães do Congo.

A diáspora não é só exílio — é missão

A nossa presença fora da África não é apenas resultado de um crime. É também um chamado.

Somos as sentinelas do espírito africano espalhadas pelo mundo.

Onde quer que estejamos, há um código dentro de nós que pulsa pela liberdade.

Por isso a cultura preta é tão poderosa, tão copiada, tão temida.

Porque mesmo sem lembrar conscientemente, a alma lembra.

Lembra da força de Ogum, da inteligência de Imhotep, da soberania de Nzinga, da luz de Sankara.

A diáspora é como um fragmento do cristal que foi lançado ao mar —

mas que ainda brilha com a mesma luz do todo.

O dia em que os pretos se reconhecerem como africanos em diáspora…

Nesse dia, não competiremos mais pelas migalhas das nações colonizadoras.

Não imploraremos por aceitação.

Não disputaremos quem é o preto mais palatável, o mais educado, o mais branco por dentro.

Nesse dia, seremos muitos, mas seremos um.

Um só povo em diferentes geografias.

Um só tambor com múltiplos toques.

Um só céu com estrelas africanas nos guiando.

Nesse dia, o que nos une será maior do que o que nos separa.

Não nos reconheceremos apenas por traços fenotípicos, mas por energia.

Por vibração.

Por ancestralidade.

E então, nenhuma política branca conseguirá nos dividir.

Nenhum algoritmo nos apagará.

Nenhuma mídia nos ridicularizará.

Nenhuma religião nos fará odiar a nós mesmos.

O mundo muda quando o preto se reconhece como universo

O preto que se reconhece como africano em diáspora não depende mais do sistema.

Ele cria. Ele expande. Ele cura. Ele sustenta comunidades. Ele planta e colhe.

Ele entende que ser preto não é apenas uma cor — é uma frequência.

E ao vibrar nessa frequência, ele acorda outros pretos ao redor.

Não com discurso político raso.

Mas com presença, com exemplo, com coragem.

Ele não espera permissão. Ele constrói o próprio chão.

Essa é a revolução: o retorno à África que nunca nos deixou.

O fim do pacto exige ruptura real

Não basta que pessoas brancas “não sejam racistas”. É preciso que sejam antirracistas com consequência, com ação, com desconforto. Que estejam dispostas a perder o que sempre lhes foi dado sem esforço. Que parem de se colocar como protagonistas da luta que não é delas, e aprendam a ouvir, ceder, repensar, recuar.

Desfazer o pacto da branquitude não é tarefa dos pretos. É missão de quem o mantém. É um chamado à coragem de enfrentar a própria história, a própria omissão, o próprio privilégio. Enquanto isso não acontecer, qualquer discurso progressista vindo da boca branca será, no fundo, só mais uma performance.

O preço do silêncio é a continuidade da violência

O pacto da branquitude mata. Mata devagar e de forma estrutural. Mata quando a polícia invade comunidades e ninguém se revolta. Mata quando um currículo preto é descartado antes da entrevista. Mata quando um adolescente preto é seguido no shopping. Mata quando a vítima precisa provar que não merecia morrer.

Mas mais do que isso: o pacto da branquitude retarda a transformação do mundo. Porque enquanto uns lutam pela justiça, outros ainda estão presos na defesa da sua própria bolha.

Se há um inimigo comum da equidade racial, ele não se veste de capuz branco. Ele usa camiseta da Anistia Internacional. Frequenta cafés orgânicos. Fala de direitos humanos com a boca e defende privilégios com os gestos. Esse é o branco progressista que, no fundo, nunca rompeu o pacto.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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