Muitos de vocês que me acompanham talvez não saibam, mas existe um episódio na minha vida que carrego como um símbolo — e que, inevitavelmente, me atravessa enquanto escrevo essas linhas. No ano de 2020, quando morei em Portugal, vivi uma das experiências mais marcantes dentro desse universo literário no qual estou mergulhado desde que me entendo por gente. Fui até a Casa dos Bicos, no coração de Lisboa — onde hoje funciona a Fundação José Saramago.
Entrar ali foi como atravessar um portal. Não era só uma biblioteca. Era um templo da palavra, da liberdade de pensamento, da rebeldia intelectual. Caminhar por aquele espaço monumental, observar a biblioteca pessoal de Saramago, tocar — com os olhos — os livros que ele mesmo leu, estudou, riscou, anotou… é algo absolutamente transformador para quem vem das letras, para quem carrega no peito o amor pelo conhecimento e pela desconstrução do mundo.
Ali, naquelas prateleiras, estava não apenas a história de um escritor, mas a prova viva de que pensar, questionar e não se submeter nunca foi tarefa confortável. E talvez seja exatamente por isso que a voz de Saramago segue viva — tão viva — reverberando no nosso tempo com a mesma força. E é justamente dele que vem essa frase que me serve hoje de ponto de partida: “O mundo seria mais pacífico se todos fossem ateus.”
E se isso soa provocativo pra você, é porque deveria.
José Saramago não foi um escritor qualquer. Foi, durante toda sua existência, um transgressor do pensamento, um herético necessário, um homem que jamais aceitou respostas prontas. Suas obras não são apenas literatura — são convites a enxergar o mundo sem as lentes do conformismo. “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, por exemplo, é mais do que uma releitura da vida de Jesus. É uma denúncia da crueldade de um Deus construído sob a lógica do medo, da punição e do poder. Um livro que gerou tanto desconforto que levou o governo português da época a tentar impedir sua circulação internacional.
Em “Ensaio Sobre a Cegueira”, ele nos obriga a refletir sobre como a humanidade escolhe, deliberadamente, não ver. Não ver a fome, não ver a miséria, não ver o absurdo da desigualdade, não ver que muita da violência que nos cerca é legitimada, dia após dia, por dogmas religiosos que prometem salvação enquanto constroem infernos na Terra.
Saramago viveu no incômodo. E sua literatura é, em essência, um manifesto contra o entorpecimento coletivo promovido pelas religiões institucionalizadas. Quando afirma que o mundo seria mais pacífico se todos fossem ateus, não está dizendo que a espiritualidade não tem valor. Está dizendo, com todas as letras, que a religião organizada, historicamente, foi um dos maiores vetores de violência, controle, opressão e guerra que a humanidade já conheceu.
Olhar para a história e não reconhecer isso é, no mínimo, má-fé ou cegueira conveniente. Das Cruzadas ao colonialismo, da Inquisição ao terrorismo contemporâneo, das guerras santas ao genocídio indígena nas Américas — tudo, absolutamente tudo, foi justificado em nome de um Deus. E esse Deus — seja lá qual for o nome que lhe deram — sempre foi masculino, punitivo, controlador, ciumento, sedento de adoração.
Quantos corpos foram queimados nas fogueiras da fé? Quantas mulheres foram chamadas de bruxas e dizimadas simplesmente por serem livres, por curarem, por conhecerem os mistérios da Terra? Quantos povos foram dizimados, quantas línguas foram silenciadas, quantas culturas foram apagadas — tudo isso com a bênção dos altares?
O problema não é a busca espiritual. O problema começa quando a busca vira dogma, quando o sagrado é sequestrado por instituições que ditam quem é digno, quem é pecador, quem vai para o céu, quem merece o inferno. E, mais grave ainda, quando essas instituições começam a legislar sobre os corpos, sobre os desejos, sobre os afetos, sobre a liberdade alheia.
Saramago, ateu convicto, nunca quis abolir a dimensão espiritual da vida. O que ele combateu até seu último suspiro foi a indústria da fé. Esse mercado bilionário que lucra vendendo ilusões, prometendo paraísos enquanto ergue impérios na Terra. Ele sabia que não é Deus quem faz o mundo ser cruel. É o uso que se faz do nome dele.
E aqui, cabe uma reflexão desconfortável: a moralidade não nasce da religião. Ela nasce da consciência. E, sejamos honestos, é muito mais fácil terceirizar a própria ética para um livro sagrado do que assumir responsabilidade sobre as próprias escolhas. A religião oferece conforto. A dúvida, não. Só que é na dúvida, no questionamento, que mora a verdadeira liberdade.
O ser humano não precisa de Deus para ser bom. Não precisa de mandamentos, de pastores, de padres, de rabinos, de gurus ou de qualquer outro mediador entre ele e a vida. A empatia, a compaixão, a ética — tudo isso nasce do reconhecimento do outro como parte de si. Não de promessas de céu, nem de ameaças de inferno.
Quando estive na Casa dos Bicos, olhando aquele acervo monumental, tive certeza de uma coisa: pensar é, talvez, o maior ato de amor que podemos oferecer ao mundo. E pensar exige coragem. Coragem de encarar o desconforto, de destruir muros internos, de abandonar bengalas espirituais, de caminhar sem garantias, sem dogmas, sem a falsa segurança de que existe alguém no céu cuidando de tudo enquanto cruzamos os braços.
Se há algo que o legado de Saramago me ensinou — e continua ensinando — é que a vida ganha sentido exatamente quando percebemos que não existe roteiro pronto, nem manual divino. O que existe é a responsabilidade por cada escolha, por cada gesto, por cada palavra.
E se existe algum Deus — ou qualquer coisa que mereça esse nome — ele, certamente, não está nos templos, nem nas igrejas, nem nas mesquitas, nem nas sinagogas. Está no ato silencioso e revolucionário de quem escolhe não ferir. De quem escolhe não dominar. De quem escolhe ser livre.
“Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos. Sem responsabilidade, talvez não mereçamos existir.” — José Saramago.