É estranho — e ao mesmo tempo revelador — observar que, no Brasil, as religiões de matriz africana seguem sendo criminalizadas, marginalizadas e atacadas, mesmo enquanto são apropriadas, estetizadas e embranquecidas. Estamos diante de um fenômeno paradoxal: o que foi historicamente perseguido agora vira tendência espiritual… mas não nas mãos de seus herdeiros legítimos.
A apropriação da estética afro espiritual — sem compromisso com a dor histórica, com os fundamentos e com os rituais — se transformou numa nova indústria. Colares são vendidos como amuletos “místicos”, guias são usados como acessórios de moda, e palavras como “orixá”, “ancestralidade” ou “axé” viraram hashtags genéricas em perfis de gente branca, espiritualizada e monetizada.
Enquanto isso, nos terreiros periféricos, pretos continuam apanhando da polícia, mães-de-santo seguem sofrendo ameaças, e casas de culto são queimadas. Há algo de profundamente doente nesse processo. E não é apenas racismo. É uma disputa por alma, por narrativa, por poder vibracional.
Religião, Poder e Colonialidade
Antes de falarmos da espiritualidade de vitrine, é necessário entender o que está por trás do embranquecimento das religiões de matriz africana. O nome disso é colonialidade.
A colonialidade, como nos ensina o sociólogo peruano Aníbal Quijano, é a continuidade do colonialismo pela imposição de valores europeus sobre os modos de existir, pensar e crer dos povos não brancos. No Brasil, isso se manifesta no racismo religioso — o mesmo que criminalizou o candomblé e a umbanda por décadas, associando seus ritos a práticas demoníacas, enquanto exaltava o catolicismo como sinônimo de civilização.
Esse racismo não desapareceu. Ele apenas mudou de forma.
Hoje, a marginalização segue viva, mas acompanhada de um novo processo: o da apropriação seletiva. Elementos da religiosidade africana passam a ser consumidos por corpos brancos, higienizados para caber nos moldes de aceitação social. O tambor é mantido, mas a história do açoite é apagada. A oferenda é mantida, mas sem Exu. A ancestralidade é exaltada, desde que seja “neutra”, “clean”, “instagramável”.
É o que chamamos de “espiritualidade de vitrine”: um simulacro de fé baseado na estética, não na ética.
Os dados não mentem: a branquitude tomou conta dos terreiros
Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE, divulgada em 2023, a maioria das pessoas que se declaram adeptas das religiões de matriz africana no Brasil hoje é branca. Isso mesmo. Em um país com mais de 56% de população preta e parda, quem lidera numericamente as fileiras religiosas do candomblé e da umbanda são pessoas que não carregam a ancestralidade diretamente ligada à escravização e ao apagamento cultural.
Isso seria apenas uma curiosidade estatística se não fosse um alerta simbólico: o terreiro está sendo tomado. Ou melhor, reformatado.
Não se trata de dizer que pessoas brancas não podem frequentar religiões de matriz africana. Mas sim de alertar que há uma dinâmica histórica em curso onde o que era resistência preta vira performance branca. E isso tem consequências políticas, sociais e espirituais.
A espiritualidade como mercado: quando o axé vira produto
Vivemos a era da “espiritualidade gourmet”. Um tempo em que se compra curso online para “ativar a ancestralidade”, em que se vende vela de orixá na prateleira da livraria esotérica. Nada disso é ingênuo.
O capitalismo espiritual cria produtos, experiências e identidades consumíveis. Nessa lógica, o sagrado vira mercadoria. O orixá é transformado em arquétipo de desenvolvimento pessoal. Xangô vira símbolo de “autoconfiança masculina”, Iansã de “mulher guerreira empoderada”, Oxum de “autoestima”. O problema não está apenas na linguagem simplificada, mas na superficialidade: retira-se o fundamento, o rito, a comunidade, o corpo, o tempo, o sangue.
Essa prática cria um apartheid simbólico: pessoas brancas monetizam a sabedoria ancestral preta enquanto os pretos continuam sendo expulsos dos seus próprios territórios espirituais. Literal e metaforicamente.
A dor que não aparece nos stories
Nos perfis brancos de espiritualidade de vitrine, você raramente verá a imagem de um terreiro de chão batido, com seu congá simples e sua gira feita à luz de vela. Não verá o relato da mãe-de-santo que perdeu seu terreiro incendiado por um grupo evangélico. Não verá o babalorixá que foi expulso do aluguel porque “a vizinhança reclamou do barulho dos atabaques”.
Verá, sim, uma mulher branca com guias coloridas no pescoço, falando sobre “ancestralidade” entre uma viagem à Chapada e um retiro no Peru. Verá um homem branco dizendo que é “médium de Oxóssi” enquanto ensina a atrair prosperidade em três passos. Verá símbolos sem a história. Sons sem a dor. Emoção sem o corpo.
É a espiritualidade do espelho, não do chão. Da pose, não da entrega.
Axé não se improvisa: ou você vive ou você performa
Há uma diferença abissal entre quem carrega axé como herança espiritual e quem o consome como elemento simbólico.
Axé não é uma palavra bonita. É energia vital ancestral, tecida no corpo, no canto, na dança, no silêncio, no cuidado, no segredo. É passado de geração em geração. É cicatriz que vira canto. É saudade que vira rito. É dor que vira cura.
Quem cresce em terreiro sabe: não se entra de qualquer jeito. Não se veste branco por estética. Não se fala o nome de Exu sem saber que ele é guardião de encruzilhadas e de vidas. Não se toma um banho de ervas sem antes pedir licença. Não se chama um orixá no Instagram.
A espiritualidade preta é vivida, não vendida. É silenciosa, não exibida. É ritual, não espetáculo.
O que está em jogo?
Mais do que uma questão de fé ou crença, o que está em jogo aqui é o direito à memória, ao corpo e ao sagrado. Quando a espiritualidade africana é apropriada, diluída e vendida sem seus contextos históricos e ancestrais, estamos diante de mais uma camada de colonialismo: a colonização espiritual.
O embranquecimento das religiões de matriz africana não é uma coincidência. É a repetição do mesmo roteiro: apagar o protagonismo preto, esvaziar a profundidade, transformar a dor em produto.
E como toda forma de colonialismo, isso só é possível quando os sujeitos colonizados são silenciados. Quando o babalorixá que dedicou 40 anos ao culto de orixá não tem visibilidade, mas o influencer que passou três semanas na Bahia vira autoridade em espiritualidade afro.
O que fazer diante disso?
- Reconhecer que há um problema estrutural. Não se trata de opinião ou exagero militante. Os dados mostram. A história mostra. O cotidiano mostra.
- Ouvir quem vive a espiritualidade africana de verdade. Mães e pais de santo. Filhos de santo. Gente que constrói comunidade, que cuida, que carrega axé no corpo, não no feed.
- Reforçar os terreiros como espaços sagrados e de resistência. Apoiar financeiramente. Divulgar. Defender quando atacados. Valorizar a oralidade e a tradição.
- Parar de consumir espiritualidade como entretenimento. Perguntar-se: estou estudando ou consumindo? Estou honrando ou fetichizando?
- Criar políticas públicas de proteção e valorização das casas de matriz africana. Assim como há investimento para manter igrejas históricas, por que não para preservar terreiros?