Quando eu escrevo afrocentrado, eu estou me referindo a pensar a sociedade, a vida, o universo, tendo a África como ponto de partida. Não se trata apenas de observar o continente africano como uma fonte de cultura, mas de entender que ele é o berço da humanidade e um dos pilares centrais da civilização. Eu não analiso mais o mundo a partir de uma perspectiva europeia, como todos nós fomos doutrinados a fazer. Aprendi a questionar a lente eurocêntrica, que nos foi imposta como padrão, e a buscar outras formas de compreender a realidade que nos cerca.
Outro dia, uma seguidora me mandou uma mensagem agradecendo intensamente pelo conteúdo em que afirmo logo de cara: A Europa não é um continente. E não é. A Europa é uma península da Ásia, ao oeste dos Montes Urais. Essa informação, que parece tão simples, quebra paradigmas para muita gente, porque fomos condicionados a colocar a Europa como o centro do mundo e do conhecimento. Recebi muitas outras mensagens semelhantes, e a cada uma delas sinto uma profunda gratidão, porque o que compartilho não é invenção minha. São conhecimentos que resgato a partir da leitura de autores e autoras fundamentais que me ajudaram a construir essa visão mais ampla.
Se hoje posso afirmar essas ideias com confiança, é porque me debrucei sobre a obra de pensadores e pensadoras que desafiaram as narrativas impostas. São autores que investigaram, resgataram e produziram conhecimentos fundamentais para pensarmos nossa existência e história de forma afrocentrada.
Abaixo, compartilho uma lista com 7 autores essenciais para quem deseja embarcar nessa jornada de desconstrução e reeducação. Cada um deles traz contribuições valiosas para compreendermos a riqueza e a complexidade do pensamento afrocentrado.
Cheikh Anta Diop
Cheikh Anta Diop é amplamente reconhecido como um dos mais importantes intelectuais afrocentrados do século XX. Nascido no Senegal, em 1923, ele se destacou por sua capacidade de integrar diferentes disciplinas – como história, antropologia, linguística, física e química – para desconstruir mitos sobre a história africana, especialmente no que diz respeito ao Egito Antigo. Em sua obra seminal, A Origem Africana da Civilização: Mito ou Realidade, Diop apresenta um estudo detalhado que desafia a visão eurocêntrica predominante, provando que a civilização egípcia é, na verdade, uma extensão das culturas negras africanas.
Diop utilizou métodos científicos inovadores para sustentar suas conclusões. Ele conduziu análises de melanina em múmias egípcias para demonstrar que os antigos egípcios eram povos negros. Além disso, ele explorou conexões linguísticas entre o Egito Antigo e línguas africanas contemporâneas, como o wolof, falado em sua terra natal. Sua abordagem interdisciplinar trouxe uma nova luz à importância da África como berço da humanidade e da civilização.
Além de seu trabalho acadêmico, Diop foi um defensor apaixonado da unidade africana. Ele acreditava que, para se libertar das garras do colonialismo e da exploração, os países africanos precisavam recuperar suas histórias compartilhadas e adotar uma visão pan-africana de progresso. Sua contribuição não foi apenas teórica: ele também participou ativamente de conferências e debates sobre o futuro político e cultural do continente. O legado de Diop continua a inspirar estudiosos e ativistas a resgatar e valorizar as contribuições africanas para a história global.
Molefi Kete Asante
Molefi Kete Asante é uma figura central no pensamento afrocentrado contemporâneo e é considerado o pai do afrocentrismo moderno. Nascido nos Estados Unidos, em 1942, Asante desenvolveu a teoria da Afrocentricidade, que busca reposicionar a África no centro das análises culturais, históricas e políticas. Seu trabalho é um chamado para a reconstrução da identidade negra a partir de uma perspectiva autônoma, que rejeita a dependência de narrativas eurocêntricas.
Em sua obra Afrocentricidade: A Teoria do Envolvimento Social, Asante apresenta o conceito de Afrocentricidade como uma ferramenta poderosa para a educação e a transformação social. Ele argumenta que a marginalização histórica da África criou uma visão distorcida sobre os povos negros, prejudicando a autoestima e a coesão comunitária. Reposicionar a África como o ponto de partida para a análise histórica, segundo Asante, é um ato de reconquista identitária e resistência.
Asante também destaca a importância da Afrocentricidade na educação, defendendo que currículos escolares e universitários devem refletir as contribuições africanas para a ciência, a arte, a filosofia e a história global. Para ele, o afrocentrismo não é apenas uma revisão histórica, mas uma filosofia de vida que promove o empoderamento, a solidariedade e a dignidade entre os povos negros. Sua influência transcende as academias, alcançando ativistas, educadores e líderes comunitários que utilizam suas ideias para fortalecer suas comunidades e construir uma nova visão de mundo.
Frantz Fanon: O Intelectual da Descolonização e da Libertação
Frantz Fanon (1925-1961) foi um dos pensadores mais influentes do século XX, cujas ideias transcenderam o tempo para moldar debates sobre colonialismo, racismo e libertação. Nascido na Martinica, uma colônia francesa no Caribe, Fanon viveu a brutalidade do colonialismo em primeira mão, experiência que marcou profundamente sua trajetória. Ele se formou como psiquiatra e, em sua prática, explorou as dimensões psicológicas da opressão colonial, analisando como o colonialismo destrói a identidade e a dignidade dos povos oprimidos.
Seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas é uma análise revolucionária sobre os impactos psicológicos do racismo, tanto para o colonizado quanto para o colonizador. Fanon argumenta que o racismo internalizado força as pessoas negras a usar “máscaras” para se adequar a um sistema que as desumaniza. Sua escrita é profundamente crítica, mas também traz esperança, destacando a necessidade de reconstruir a identidade negra em um contexto de dignidade e liberdade.
Fanon ampliou suas ideias em Os Condenados da Terra, escrito durante seu envolvimento com os movimentos de libertação na Argélia. Este livro é um manifesto sobre a violência revolucionária como ferramenta necessária para desmantelar sistemas coloniais. Ele argumenta que a libertação não é apenas política, mas também mental e cultural, exigindo uma reconstrução total das estruturas de poder e identidade.
O impacto de Fanon vai muito além de suas obras. Ele influenciou movimentos de libertação na África, no Caribe e em outras partes do mundo, sendo amplamente citado por líderes como Malcolm X e Steve Biko. Seu pensamento permanece relevante, oferecendo ferramentas para questionar as dinâmicas de poder e lutar contra formas modernas de opressão, como o neocolonialismo e o racismo estrutural.
Aimé Césaire: O Poeta da Negritude e da Reivindicação Africana
Aimé Césaire (1913-2008) foi um poeta, dramaturgo e político martinicano cuja obra e ativismo transformaram o pensamento sobre identidade negra, colonialismo e cultura africana. Junto com Léopold Sédar Senghor, ele foi um dos fundadores do movimento da Negritude, uma corrente literária e política que celebrava a cultura negra e resistia à desumanização colonial.
Césaire é mais conhecido por seu poema épico Caderno de um Retorno ao País Natal, uma obra profundamente lírica que reflete sua busca por identidade e pertencimento em um mundo marcado pelo colonialismo. O poema é um grito de resistência e um chamado para a celebração das raízes africanas, denunciando o racismo e a exploração colonial enquanto exalta a força e a beleza da cultura negra. Suas palavras ecoam uma dor histórica, mas também carregam um profundo senso de esperança e renovação.
Como político, Césaire desempenhou um papel crucial na luta pelos direitos dos povos colonizados. Ele foi prefeito de Fort-de-France e deputado da Martinica por várias décadas, defendendo reformas que melhorassem a vida de seus conterrâneos. Em seu famoso ensaio Discurso sobre o Colonialismo, Césaire denuncia a hipocrisia do colonialismo europeu, expondo como ele destruiu culturas e subjugou milhões sob a justificativa de “civilizar”. Para ele, o colonialismo era não apenas uma prática econômica e política, mas também um ato de violência cultural e espiritual.
O legado de Aimé Césaire está profundamente entrelaçado com a valorização da identidade negra e a luta contra o racismo e o colonialismo. Sua escrita poética e incisiva continua a inspirar intelectuais, artistas e ativistas ao redor do mundo. Ele nos lembra que a arte e a literatura são poderosos instrumentos de resistência e que, para reescrever a história, é necessário recuperar a dignidade e a humanidade que o colonialismo tentou apagar.
Beatriz Nascimento e Neusa Santos Souza: Pilares do Pensamento Preto Brasileiro
As intelectuais Beatriz Nascimento e Neusa Santos Souza são referências indispensáveis para quem deseja compreender a complexidade das relações raciais, de gênero e de identidade no Brasil. Ambas desenvolveram reflexões profundas que resgatam a memória e a resistência da população preta, além de desafiar as narrativas centradas na supremacia branca, que historicamente marginalizaram essas contribuições.
Beatriz Nascimento: Quilombos como Espaços de Existência e Resistência
Beatriz Nascimento (1942-1995), nascida em Aracaju, foi uma historiadora, ativista, poeta e pesquisadora pioneira no estudo dos quilombos. Mudando-se para o Rio de Janeiro ainda jovem, ela formou-se em História pela UFRJ e dedicou sua trajetória acadêmica e militante à recuperação da memória preta no Brasil.
Seus estudos sobre os quilombos foram revolucionários. Beatriz os conceituou não apenas como espaços físicos de resistência ao escravismo, mas como símbolos de continuidade histórica e cultural entre a África e o Brasil. Para ela, os quilombos eram territórios onde modos de vida africanos eram recriados e ressignificados, desafiando diretamente a lógica da supremacia branca que buscava apagar essas memórias. Essa perspectiva amplia o entendimento dos quilombos como parte fundamental da luta contra a opressão racial e da construção de uma identidade preta no Brasil.
Beatriz também destacou-se por sua participação no documentário Orí (1989), que registra os movimentos pretos entre 1977 e 1988, e por sua produção poética, que mesclava ativismo e lirismo. Seu legado inspira não apenas acadêmicos, mas também movimentos sociais e culturais que resgatam a importância da memória coletiva como resistência.
Neusa Santos Souza: Psicologia e Subjetividade Preta
Neusa Santos Souza (1948-2008) foi uma psicóloga e psicanalista que marcou profundamente os estudos sobre a subjetividade preta no Brasil. Formada pela UFRJ, sua obra central, Tornar-se Negro: As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social (1983), é um marco nos estudos sobre racismo e saúde mental.
Nesse livro, Neusa aborda os desafios enfrentados por pessoas pretas em ascensão social em um contexto dominado pela supremacia branca, que impõe padrões de poder e aceitação baseados na branquitude. Ela explora as tensões psicológicas causadas pela internalização de valores racistas e o esforço de muitos pretos para se adequar a um sistema que frequentemente exige a negação de sua identidade e cultura. Sua análise é um chamado para enfrentar a lógica opressora da supremacia branca e afirmar a identidade preta em todas as suas dimensões.
Além disso, Neusa contribuiu para o desenvolvimento de uma psicologia que reconhecesse as especificidades culturais e históricas das pessoas pretas, rompendo com as abordagens que perpetuam a desumanização e marginalização imposta por estruturas racistas. Seu trabalho continua sendo uma ferramenta indispensável para combater os efeitos da supremacia branca sobre a saúde mental das populações pretas.
Legados Incontornáveis
Tanto Beatriz Nascimento quanto Neusa Santos Souza construíram pontes entre a história, a psicologia e a luta contra a supremacia branca. Beatriz nos ensinou a valorizar os quilombos como territórios de resistência e memória, enquanto Neusa trouxe à tona as dimensões psicológicas do racismo e a importância de afirmar a identidade preta. Seus legados continuam vivos, desafiando as estruturas de poder racial e inspirando novas gerações a resgatar, compreender e transformar a realidade das populações pretas no Brasil.
O Legado Roubado: Um Fenômeno Mundial da Literatura Preta Afrocentrada
O Legado Roubado (Stolen Legacy), escrito por George G. M. James em 1954, é um fenômeno mundial da literatura preta afrocentrada. A obra é um marco por resgatar as contribuições africanas para o desenvolvimento do conhecimento universal, desafiando as narrativas eurocêntricas que há séculos dominam a história da filosofia e da ciência. Este livro se tornou um ponto de referência para intelectuais e ativistas comprometidos com a descolonização do pensamento e o resgate da ancestralidade africana.
A Tese Central de George G. M. James
George G. M. James, um acadêmico de origem guianense, defende em O Legado Roubado que as bases do pensamento filosófico ocidental, amplamente atribuídas à Grécia Antiga, foram apropriadas de conhecimentos desenvolvidos no Egito, uma civilização africana avançada. Ele afirma que os filósofos gregos mais reverenciados, como Sócrates, Platão e Aristóteles, obtiveram grande parte de seu aprendizado diretamente de mestres egípcios ou de textos e ensinamentos egípcios adquiridos durante a colonização do Egito pelos gregos.
James destaca que o Egito, muito antes do surgimento da Grécia como potência intelectual, já era um centro de saber sofisticado, com contribuições marcantes em áreas como filosofia, medicina, astronomia e matemática. A apropriação grega, segundo ele, não apenas apagou as raízes africanas do conhecimento, mas também reconfigurou a história de maneira a reforçar a supremacia branca.
Uma Obra de Reconstrução Histórica
Mais do que uma denúncia de apropriação cultural, O Legado Roubado é uma obra que busca reconstruir a história sob uma perspectiva afrocentrada. James expõe como a narrativa eurocêntrica foi construída para desvalorizar as contribuições africanas, relegando o Egito a um “exceção” e negando sua conexão com o resto do continente africano. Ele desafia essa visão, reafirmando que o Egito faz parte de uma longa tradição cultural e intelectual africana.
Para James, a ocultação das origens africanas do conhecimento é parte de um projeto maior de opressão que visava desumanizar os povos negros e minar sua autoestima. Ele escreveu O Legado Roubado como um chamado à ação, convidando os descendentes de africanos a se reconectarem com suas origens e resgatarem sua história.
O Impacto Mundial de O Legado Roubado
Desde sua publicação, O Legado Roubado tornou-se um texto fundamental para movimentos afrocentrados em todo o mundo. Ele influenciou gerações de pensadores, ativistas e educadores, que utilizam suas ideias para questionar o ensino tradicional, promover a valorização das culturas africanas e combater as estruturas de poder racializadas que ainda moldam o mundo contemporâneo.
George G. M. James enfrentou resistência e perseguição por suas ideias revolucionárias, mas sua obra resistiu ao tempo e permanece relevante. O Legado Roubado é frequentemente citado em discussões sobre descolonização, educação e justiça histórica, sendo uma referência indispensável para quem busca compreender a profundidade e a centralidade das contribuições africanas para a civilização.
Wanderson Dutch
Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.