Niède Guidon: o achado arqueológico que escancarou as navegações africanas muito antes de Colombo.

Niède Guidon é uma dessas figuras que a história acadêmica conservadora gostaria de varrer para debaixo do tapete. Não por falta de mérito ou rigor, mas porque o que ela encontrou no semiárido brasileiro ameaça derrubar os castelos eurocêntricos que sustentam a cronologia oficial da ocupação das Américas.


Quando começou a trabalhar na Serra da Capivara, no Piauí, ninguém poderia prever que ela encontraria vestígios de presença humana datados em impressionantes 56 mil anos. Fogueiras fossilizadas, fragmentos de utensílios, pinturas rupestres — tudo isso em um contexto arqueológico que simplesmente não cabe no estreito roteiro que a academia insiste em repetir: o de que os primeiros humanos chegaram às Américas pelo estreito de Bering há cerca de 12 a 15 mil anos, vindos da Ásia.

Mas Guidon não recuou diante das pressões e do escárnio de setores acadêmicos que, quase sempre liderados por homens brancos, faziam piadas sobre seu trabalho ou o classificavam como “irresponsável”. Pelo contrário, continuou firmemente defendendo que populações muito anteriores poderiam ter chegado à América pelo mar, vindas da África, aproveitando correntes oceânicas naturais que partem do Golfo da Guiné em direção direta ao litoral brasileiro.

Essa hipótese, tão corajosa quanto necessária, resgata o protagonismo africano não apenas como berço biológico da humanidade — o que já é cientificamente pacífico — mas também como berço civilizatório, náutico e exploratório, um dado quase sempre negligenciado nos currículos escolares, nos documentários e nos livros que moldaram nossa mentalidade colonizada.

África: berço dos navegadores e dos astrônomos

Para muitos, a ideia de africanos cruzando o Atlântico há dezenas de milhares de anos soa quase como fantasia. Isso só mostra o quanto fomos condicionados a crer que a África existia numa espécie de estagnação eterna, sem tecnologia, sem ousadia, sem ciência.

Mas basta olhar as evidências. Povos africanos já utilizavam embarcações há mais de 8.000 anos, segundo escavações arqueológicas em regiões como o Lago Chad. No Egito antigo (ou Kemet, para honrar seu nome original), o domínio da engenharia naval era tão avançado que barcos enormes eram montados sem pregos metálicos, apenas com cordas de papiro e palmeira, costurando tábuas com precisão. Essas embarcações singravam o Nilo, o Mediterrâneo e o Mar Vermelho em viagens comerciais e militares que ligavam civilizações de maneira intrincada.

Os templos e tumbas egípcias são repletos de relevos mostrando esses navios, alguns transportando dezenas de tripulantes, mercadorias preciosas, animais vivos e oferendas para terras distantes como Punt — que muitos arqueólogos situam no Chifre da África. Mas o mais extraordinário é que essas técnicas não ficaram restritas ao Nilo. Elas espalharam-se pelo continente, chegando a civilizações da África Ocidental que dominaram igualmente a arte náutica.

O poder das correntes atlânticas: a rota natural África-Brasil

Hoje sabemos que o Oceano Atlântico tem correntes marítimas extremamente estáveis, correndo do Golfo da Guiné para as costas do Nordeste brasileiro. São as chamadas correntes equatoriais do Atlântico, verdadeiras esteiras líquidas que transportam troncos, sementes e até pequenas balsas naturais do oeste africano diretamente para praias brasileiras.

Se até objetos inanimados fazem essa travessia, por que não embarcações construídas por mãos humanas, guiadas por navegadores que dominavam a leitura dos astros? O conhecimento astronômico africano era tão refinado que monumentos como Nabta Playa, construído há mais de 7.000 anos no sul do Egito, já marcavam solstícios e se alinhavam com constelações como Orion e Sirius — instrumentos fundamentais para qualquer navegação de longo alcance.

Essas populações sabiam exatamente quando zarpar, para onde apontar, como se guiar pelas estrelas, algo que a Europa medieval só viria a aprender com influência árabe, séculos depois. Dizer que africanos não poderiam ter cruzado o Atlântico é ignorar completamente a genialidade de seus astrônomos e marinheiros.

Mansa Abubakari II e a frota que sumiu no mar

Mas se restava alguma dúvida do ímpeto explorador africano, ela é sepultada com a história do Império do Mali. No início do século XIV, o imperador Mansa Abubakari II construiu uma frota colossal de 2.000 embarcações, equipada com suprimentos para meses, para descobrir o que havia além do horizonte do Atlântico.

Segundo registros do historiador árabe Al-Umari, Abubakari enviou uma primeira leva de 200 navios, dos quais apenas um retornou, relatando que os demais foram tragados por uma poderosa corrente (possivelmente a canária). Insatisfeito, o mansa preparou então uma segunda expedição — ainda maior — e ele próprio embarcou nela, desaparecendo para sempre nas águas do Atlântico.

Para muitos estudiosos afrocentrados, como Ivan Van Sertima em seu livro clássico They Came Before Columbus, essa história não é mito, mas parte de uma realidade abafada: africanos já frequentavam as Américas muito antes de Colombo, estabelecendo laços culturais e comerciais que a colonização europeia fez questão de obliterar. Há inclusive relatos de cronistas espanhóis do século XVI que encontraram povos indígenas descrevendo homens negros mercadores que haviam vindo pelo mar.

Niède Guidon provou o que a elite tenta negar

Quando Niède Guidon revelou suas datas de 50 mil anos para os sítios do Piauí, o mundo acadêmico tradicional entrou em polvorosa. Aceitar isso significaria reescrever toda a história da presença humana nas Américas, e por tabela admitir que outras rotas — inclusive as africanas — podem ter sido pioneiras.

A ideia de que africanos cruzaram o Atlântico, se estabeleceram e deixaram descendentes é tão ameaçadora porque derruba o mito da supremacia europeia enquanto motores da “civilização”. Revela o quanto o Atlântico foi antes um corredor de encontros e trocas livres, e só depois transformado num cemitério de navios negreiros.

Resgatar essa história é uma revolução mental

Por isso tudo, exaltar as navegações africanas não é só um capricho historiográfico: é um ato político, psicológico e espiritual. É romper as correntes mentais que nos fizeram crer que os ancestrais africanos eram apenas “cargas humanas”, sem ciência, sem mapa, sem rumo.

Povos africanos eram engenheiros navais, astrônomos e cartógrafos do céu, muito antes de portugueses e espanhóis ousarem sair do Mediterrâneo. Eles exploraram mares, desbravaram correntes e deixaram impressões culturais que, se não foram totalmente apagadas, é porque resistem ainda hoje em traços linguísticos, botânicos e até genéticos nas Américas.

Precisamos ensinar nossas crianças, sobretudo as de ascendência africana, que seus ancestrais não eram passivos, esperando ser capturados — eram viajantes do oceano, mestres do cosmos, guardiões de rotas marítimas que hoje desafiam o entendimento colonial.

Para se aprofundar: referências essenciais

  • Niède Guidon: acervo do Museu do Homem Americano (PI) e entrevistas publicadas em jornais como Folha de S. Paulo e El País Brasil.
  • Ivan Van Sertima, They Came Before Columbus: The African Presence in Ancient America (Random House, 1976).
  • Thor Heyerdahl, The Ra Expeditions, documentando travessias do Atlântico em barcos construídos com técnicas egípcias.
  • Runoko Rashidi, artigos e conferências sobre diáspora africana pré-colombiana.
  • Cheikh Anta Diop, especialmente The African Origin of Civilization: Myth or Reality, que mostra a sofisticação tecnológica africana.
  • Al-Umari, cronista árabe que registrou a viagem marítima de Mansa Abubakari II.
  • Trabalhos oceanográficos contemporâneos sobre as correntes do Atlântico, demonstrando o fluxo natural entre o Golfo da Guiné e o litoral brasileiro.
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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