O Brasil muitas vezes diz que se orgulha de sua diversidade, mas poucos reconhecem que muitas das palavras que falamos todos os dias não vieram do português, mas sim do Bantu, um grupo de línguas e culturas originárias da África. Quiabo, angu, quilombo, samba, quitute… Cada uma dessas palavras carrega em si não apenas um significado, mas um legado de resistência, luta e pertencimento.
E é essa história que a Estação Primeira de Mangueira levará para a avenida em 2025, trazendo à tona a influência profunda dos povos Bantu na formação do Rio de Janeiro. Mais do que um enredo, trata-se de um resgate histórico e cultural. A narrativa começará muito antes do samba enredo tocar na Sapucaí – ela se desenha nos porões dos tumbeiros, nas ruas da Pequena África e nos zungus, espaços de acolhimento e resistência para os africanos escravizados e seus descendentes.
Dos Zungus ao Quilombo da Mangueira
No Brasil colonial, os zungus eram muito mais do que locais onde ex-escravizados se reuniam para cozinhar e compartilhar comida. Eram quilombos urbanos, trincheiras culturais onde a herança africana se mantinha viva, onde os corpos eram livres para dançar, cantar e contar histórias sem a vigilância do colonizador. Ali se misturavam o sagrado e o profano, a dor da diáspora e a alegria da sobrevivência. Se hoje o samba existe, é porque os zungus existiram antes.

Ao escolher esse tema, a Mangueira não apenas exalta a ancestralidade preta, mas evidencia como a cultura Bantu moldou a identidade carioca. A influência está na fala, na música, na culinária, na fé, no batuque. Está nas rodas de jongo, nos terreiros, no jeito de pisar o chão e saudar os mais velhos. Não há Rio de Janeiro sem Bantu.
O olhar de Sidnei França: contar a história pela voz dos que sempre foram silenciados
A escolha desse enredo começou quando Sidnei França, um dos carnavalescos mais premiados do carnaval brasileiro, foi convidado para assumir a Verde e Rosa. Livre para criar, ele mergulhou em pesquisas e construiu o enredo “À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões”, inspirado na dissertação de mestrado do professor da UFRJ, Júlio César Medeiros, e no livro A Flor da Terra no Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro.
A narrativa nasce do horror dos navios negreiros, dos corpos que chegavam sem vida ou morriam logo ao desembarcar. O Cais do Valongo, porta de entrada de quase um milhão de africanos escravizados, não era um porto, mas um cemitério a céu aberto. Ali, os que não resistiam à travessia eram simplesmente descartados em covas rasas, sem nome, sem despedida, sem respeito. É esse passado, brutal e incontornável, que a Mangueira faz questão de contar.
Mas a história não termina na dor. O enredo também celebra a vida, a resiliência e a força desse povo que, mesmo diante da crueldade, reinventou a existência e construiu o Brasil. Sidnei França, acostumado a transformar história em espetáculo, sabe que não basta lembrar: é preciso emocionar, fazer com que cada pessoa sinta a pulsação desse enredo na alma.
Mangueira rumo ao tertítulo?
Se depender da grandiosidade do enredo e da tradição da escola, a luta pelo título do Grupo Especial está garantida. Sidnei já provou sua competência ao conquistar múltiplos campeonatos em São Paulo, e agora, à frente de uma das escolas mais icônicas do carnaval carioca, tem a chance de fazer história novamente.
A Mangueira já mostrou que sabe usar a Sapucaí como palco de resistência. Em 2019, quando cantou os heróis que a história não contou, a escola deixou claro que seu compromisso é com a verdade e com o povo preto. Em 2025, a missão se repete: recontar o Brasil sob uma ótica que nunca deveria ter sido silenciada.
O desfile será um grito. Um grito de quem sempre esteve aqui, de quem nunca se curvou, de quem fez do Brasil o que ele é. Quando o primeiro tambor ecoar na avenida e os primeiros versos do samba enredo forem entoados, o Rio de Janeiro inteiro vai lembrar: a cultura Bantu não foi apagada. Ela vive em cada esquina, em cada batida do tambor e, agora, será exaltada na Marquês de Sapucaí.
Para o povo preto no Rio de Janeiro, a morte não era apenas física, mas também cultural. Romper com os laços ancestrais foi uma das ferramentas mais violentas da colonização, pois matar a identidade é matar duas vezes. E é esse resgate que a Mangueira levará para a Sapucaí, contando a história da influência Bantu na cidade, um legado que sobrevive em cada esquina, cada som, cada palavra.
Sidnei França, carnavalesco da escola, destaca que cerca de 80% dos africanos desembarcados no Rio eram Bantu, vindos de regiões como os Congos e Angola. Essa predominância moldou a identidade carioca de forma incontestável, e o enredo “À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões” faz justiça a essa história. “Nosso discurso é Bantu em respeito a essa maioria. Essa travessia foi muito além do tráfico praticado pelo homem branco, foi uma força espiritual,” afirma Sidnei.
Os zungus: resistência e acolhimento
O desfile trará a trajetória dos pretos escravizados desde a travessia da África até a formação da identidade preta carioca. Um dos destaques são as Casas de Zungu, espaços fundamentais de acolhimento e resistência. Mais do que refúgios, os zungus eram verdadeiros quilombos urbanos, onde pretos fugidos e trabalhadores se protegiam, mantinham suas tradições e se fortaleciam. Eram identificados por panos brancos nas janelas, um sinal de Oxalá para proteção, e também pelo angu servido pelas matriarcas.
Atualmente, foram mapeadas mais de 50 Casas de Zungu no Rio, e muitas delas já foram substituídas por novas construções. Algumas, no entanto, ganharam placas de reconhecimento, provando que não se trata de lenda urbana, mas de um fato histórico essencial para entender a formação da cidade. Esses locais foram perseguidos pela polícia e constantemente desmontados, mas, como tudo que é preto e resistente, surgiam de novo em outros pontos. “Se a repressão fosse extrema, poderia virar um levante. A presença Bantu estava por toda parte,” explica Sidnei.
O impacto Bantu na cultura carioca e brasileira
O enredo avança para o século XX, destacando a influência Bantu na formação da umbanda e na transformação do idioma falado no Brasil. Palavras como quiabo, quitanda, quitute, quilombo, carinho, dengo, xodó, samba e bunda vêm do Bantu, mostrando que essa herança está viva na língua e no cotidiano dos brasileiros. “O português falado no Brasil não é igual ao de Portugal porque foi moldado pelo Bantu. Está na nossa fala e nem sabemos de onde veio,” ressalta Sidnei.
Mangueira reafirma sua identidade quilombola
A identificação da comunidade com o enredo foi imediata. Para Sidnei, a Mangueira é a única escola do Grupo Especial que tem sua sede dentro de uma favela, um quilombo urbano. “A Mangueira levar para o desfile essa identidade preta e essencialmente carioca é algo poderoso,” diz.
Mais do que um desfile, a escola se prepara para um grito de reafirmação. A Mangueira já fez história em 2019 exaltando heróis esquecidos, e em 2025 volta à Sapucaí para lembrar que a cultura Bantu nunca foi apagada. Ela pulsa na cidade, na língua, na música, na fé. E agora, será celebrada como merece.