“Lula vai escolher um homem branco para o cargo no STF”-Miriam Leitão

Leitão qualificou de aberração o fato de que, entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, há apenas uma mulher (e nenhuma pessoa negra).  Não é exagero — trata-se de um déficit institucional gravíssimo que revela a persistência de uma elite branca e masculina que monopoliza as decisões jurídicas que moldam o Brasil. A crítica não se sustenta apenas em sentimento de identidade, mas em lógica de representatividade real: o Brasil não é formado só por homens brancos. A Suprema Corte do país não pode ser um retrato distorcido da nação.

Quando alguém na imprensa dá como fato que Lula “certamente” escolherá um homem branco, está fazendo mais do que previsibilidade política: está explicitando um horizonte naturalizado, um consenso tácito de quem pode “entrar na sala”. Está dizendo: não espere que negro ou mulher ocupe esse espaço, porque o sistema não permite — ou pior, não quer.

O “certamente” como discurso de naturalização

A força da afirmação “vão escolher um homem branco” não está apenas em sua previsibilidade, mas em como ela naturaliza o racismo institucional. É como se, no imaginário político nacional, fosse óbvio — incontestável — que determinada casta continuará ocupando as vagas mais altas. Esse “certamente” é uma sentença que reforça a falta de imaginação política: reforça que a política de cotas, de espaços de poder (inclusive simbólicos), é exceção e não norma.

Quando a jornalista afirma com convicção que Lula vai escolher um homem branco, ela reforça, conscientemente ou não, o padrão que ela própria critica. Em lugar de denunciar a estrutura, ela a legitima — ao tratar a escolha discriminatória como inevitável.

A falácia da “deficiência técnica” e o véu da meritocracia

Toda vez que se questiona representatividade, surge o argumento da “falta de bons nomes” ou da “deficiência técnica”. Não faltam juristas negras e mulheres com currículo robusto, reputação ilibada, conhecimento constitucional — apenas não foram selecionadas ou sequer cogitadas. O ponto de ruptura não está na escassez de competência, mas na escassez de vontade política.

Ao repetir a narrativa de que não devem ser indicadas pessoas negras ou mulheres, a mídia — mesmo em tom crítico — pode perpetuar o mito da meritocracia: de que o critério técnico é neutro e basta deixar “o mais capaz” subir. Mas na realidade brasileira, “capacidade” já vem embalada em trajetória desigual: quem nasce branca, com redes de acesso e influência política, passa menos por obstáculos estruturais.

A coerção simbólica do poder branco

A fala de Leitão denuncia, sem querer, a coerção simbólica deste poder branco: é como se, ao afirmar “vai ser um homem branco”, estivesse traçando um mapa muito claro do que é permitido na política institucional. Não só o STF, mas ministérios, empresas estatais, corporações — tende-se a reproduzir esse padrão.

Há outro modo de ler a afirmação: ela é um alerta. Se o Brasil não for empurrado por pressão política, social, ativismo, se não houver cobrança, essa escolha “óbvia” vai se concretizar — e com isso continuará a reforçar o racismo simbólico e institucional.

O “fazer” contra o “dizer”

Criticar é necessário, mas não pode ser tudo. Se a estupidez de afirmarmos, sem rubor, que “só um homem branco serve para o STF” continua sendo repetida em emissoras de grande visibilidade, isso exige uma resposta mais contundente: exigi-la, contestá-la, sugerir alternativas, indicar nomes negros e mulheres com densidade técnica, visibilidade.

O jornalismo, se realmente quer ser crítico, deveria rechear esse “vai ser branco” com questionamentos: por que só se contempla esse perfil? quais foram os nomes negros que foram vetados ou ignorados? que narrativa histórica sustenta esse padrão? que força social poderia alterá-lo? O “vai escolher branco” precisa se tornar lente de desnudamento, não apenas crítica resignada.

Algumas doses de provocação

  • Se “certamente” o nome será masculino e branco, então por que não se propõe um debate público de indicação com critérios transparentes de pluralidade racial e de gênero?
  • Se não há mulheres ou negros no STF hoje, é preciso lembrar: até pouco tempo, não se cogitava sequer mulheres para cargos ministeriais ou presidenciais — e hoje já temos avanços. O impossível, quando bem combatido, pode mudar.
  • É uma aberração sim. Mas ela só começará a deixar de ser se alguém — no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ou na sociedade civil — resolver que vai agir de maneira diferente.
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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