Existe uma pergunta que atravessa o tempo, as tecnologias e os regimes políticos — e que o Brasil insiste em responder errado: liberdade de expressão para quem?
Porque, convenhamos, se fosse um direito universal, não precisaria de tanto asterisco, rodapé jurídico, termo de uso seletivo e silenciamento estratégico.
No discurso oficial, todos podem falar. Na prática, alguns falam demais e nunca sofrem consequência alguma. Outros dizem o essencial — e pagam caro por isso.
Quando uma conta é derrubada, quando um alcance despenca sem explicação, quando um perfil some do mapa digital, o argumento vem pronto, embalado a vácuo: “a plataforma é privada”, “violou diretrizes”, “foi decisão técnica”. O novo latim do poder. Frases que não explicam nada, mas encerram qualquer debate.

Chavoso da USP
O caso recente do Chavoso da USP, silenciado no Instagram, não é exceção — é sintoma. Não se trata apenas de um influenciador com posição política clara; trata-se de um corpo, uma origem, um discurso que desafia a normalidade confortável do sistema. E isso, historicamente, nunca foi tolerado.
O curioso é que a régua nunca é a mesma. Discurso de ódio circula, monetiza, viraliza. Mentiras organizadas viram campanha. Apologia à violência recebe selo de “opinião”. Já a crítica estrutural, a denúncia do poder econômico, o questionamento do Estado, do capital, da polícia ou da mídia… isso vira “problema”.
Quando falar vira crime, não é porque a fala é violenta. É porque ela revela.
A história está repleta de exemplos. Sempre que alguém ousou falar além do permitido, a resposta veio rápida. Malcolm X foi vigiado, criminalizado e, por fim, assassinado. Martin Luther King Jr. foi tratado como inimigo interno pelo FBI antes de virar estátua. Nelson Mandela passou quase três décadas preso, classificado como terrorista, até que o mundo resolvesse mudar o rótulo.
O roteiro é antigo: primeiro ridicularizam, depois criminalizam, por fim tentam apagar. Se não der para apagar, transformam em símbolo inofensivo, despolitizado, palatável para livros didáticos e comerciais de televisão.
O que muda hoje é o palco. Antes, o silenciamento vinha via prisão, exílio ou bala. Agora, ele vem em forma de algoritmo. Um clique invisível, uma diretriz opaca, uma decisão sem rosto. Não há julgamento público, não há direito à defesa real. Apenas o sumiço.
E não sejamos ingênuos: o algoritmo não é neutro. Ele carrega valores, interesses, alianças. Ele decide quem pode falar alto, quem deve sussurrar e quem precisa desaparecer. E, quase sempre, quem desaparece é quem denuncia desigualdade, racismo, colonialismo, patriarcado, exploração.
A pergunta então não é se existe censura. Ela existe. A pergunta é quem a exerce e a serviço de quem.
O sistema adora dizer que vivemos numa democracia plena, com liberdade garantida. Mas democracia sem conflito é propaganda. Liberdade que não suporta crítica é marketing. Quando a fala ameaça o lucro, o poder ou a estabilidade do status quo, ela deixa de ser “expressão” e passa a ser tratada como risco.
Por isso, é falso o debate que opõe “liberdade de expressão” a “responsabilidade”. O que existe, de fato, é uma gestão política da fala. Algumas vozes são consideradas legítimas, mesmo quando destilam ódio. Outras são vistas como perigosas, mesmo quando falam em direitos.
No Brasil, isso se cruza com raça, classe e território. Quem vem da periferia, quem é preto, quem rompe com a narrativa oficial, nunca teve o benefício da dúvida. A fala já nasce sob suspeita. A crítica já nasce criminalizada.
E aqui está o ponto central: não se cala quem mente. Cala-se quem organiza pensamento.
Não se persegue o grito vazio. Persegue-se a palavra que articula, que conecta, que desvela.
Quando contas são derrubadas, quando vozes são limitadas, não é apenas um indivíduo que se tenta silenciar. É uma possibilidade de leitura do mundo. É um convite à reflexão que o sistema prefere que não seja aceito.
Por isso, a pergunta precisa ser repetida, martelada, escrita em muros, telas e textos:
liberdade de expressão para quem?
Enquanto essa liberdade depender de alinhamento político, aceitabilidade social e conveniência econômica, ela não será um direito — será uma concessão. Temporária. Revogável. Condicionada.
E toda concessão, cedo ou tarde, é retirada quando começa a incomodar demais.
Falar, hoje, ainda é um ato político. E justamente por isso, segue sendo tratado como crime.