De tempos em tempos, as redes sociais produzem comparações tão absurdas que parecem piada. A mais recente é colocar Jones Manoel e Ciro Gomes no mesmo balaio — como se suas trajetórias, estratégias e propósitos políticos pudessem ser equivalentes. O problema é que, longe de ser apenas uma piada de mau gosto, esse tipo de paralelo carrega um peso político: ele serve para deslegitimar, reduzir e enquadrar uma figura pública que, por sua história e projeção recente, rompe paradigmas.
Ciro Gomes é um homem branco, oriundo de uma família tradicional no cenário político brasileiro, carregando os privilégios que essa herança lhe proporcionou. Ao longo de décadas, transitou por diferentes partidos, ocupou cargos de relevância e se manteve como figura conhecida no debate nacional. Sua trajetória é marcada por reposicionamentos — alguns interpretam como pragmatismo, outros como oportunismo —, e por um projeto nacional que, apesar das críticas, é interessante estudar. Ainda assim, nos últimos anos, Ciro parece ter se perdido no próprio personagem, desconectando-se de parte das bases que um dia conquistou.
Já Jones Manoel é o oposto desse molde. Homem preto, nordestino, historiador e militante marxista, ele não veio de família influente nem de escolas políticas tradicionais. Sua projeção nasce do trabalho intelectual e da militância de base, com uma proposta clara: a revolução comunista brasileira. Sua formação é orgânica, construída no diálogo com a classe trabalhadora, e sua presença digital cresce por falar de política e história com profundidade e clareza, rompendo a barreira de um milhão de seguidores nas redes. Essa ascensão sem intermediação dos partidos e sem a chancela da elite política é, por si só, um ato disruptivo.
Atribuir a Jones Manoel a ambição de “destruir o PT” revela um duplo equívoco. Primeiro, porque coloca a disputa partidária no centro de um projeto que vai muito além da lógica institucional. Quem defende uma transformação radical das estruturas econômicas e políticas não está interessado em trocar o comando de um partido, mas em alterar as bases do próprio sistema. É como dizer que alguém que planeja demolir um prédio inteiro está preocupado em trocar a fechadura de uma das portas. Segundo, porque insinua que qualquer crítica vinda da esquerda ao PT é sinal de rivalidade, quando, na verdade, pode ser sinal de coerência ideológica.
O incômodo com Jones Manoel não se explica apenas por divergências políticas. Ele representa um corpo, uma voz e uma narrativa que a política brasileira não está acostumada a ver com protagonismo. Um homem preto, comunista e nordestino falando para milhões, sem pedir licença, desmonta uma lógica histórica em que o poder político, mesmo no campo progressista, sempre foi mediado por lideranças brancas, muitas vezes de classe média alta. Essa quebra de padrão incomoda tanto adversários da direita quanto setores da esquerda que se consideram guardiões da narrativa.
Não é coincidência que, recentemente, Jones tenha tido sua conta oficial no Instagram derrubada pela Meta, sem aviso ou justificativa plausível, prática recorrente contra vozes negras e radicais. Silenciar é uma estratégia antiga. Quando isso não funciona, entra em cena a desqualificação: espalhar caricaturas, criar comparações forçadas, associar a figuras que, apesar de conhecidas, carregam trajetórias e contradições distintas. A ideia é simples: enquadrar para neutralizar.
Compará-lo a Ciro Gomes cumpre exatamente esse papel. Reduz um fenômeno político-social a um molde já conhecido e desgastado. Tira o foco das ideias e da proposta que Jones defende e o coloca numa disputa pessoal que não existe. E, pior, alimenta a narrativa de que toda liderança fora da política institucional tradicional é apenas uma cópia de algo anterior — uma forma de negar originalidade e autonomia.
A verdade é que Jones Manoel não disputa uma cadeira na velha mesa do poder: ele questiona a própria mesa. E isso é muito mais ameaçador para o sistema do que qualquer candidatura ou aliança eleitoral. Sua presença no debate público é um lembrete incômodo de que existem outras formas de fazer política, fora das amarras do calendário eleitoral e das negociações de bastidores.
O que essa comparação revela, no fundo, não é proximidade entre Jones e Ciro, mas a dificuldade — e até o medo — de lidar com a ascensão de lideranças negras e radicais no Brasil. É um reflexo de como ainda tentamos enquadrar todo fenômeno político dentro de categorias antigas, mesmo quando o fenômeno rompe essas categorias.
Ao invés de perder tempo com paralelos artificiais, seria mais útil encarar a pergunta que essa ascensão coloca: estamos preparados para ouvir e dialogar com uma liderança que não busca apenas “melhorar” o sistema, mas transformá-lo radicalmente? E mais: por que tantos se sentem ameaçados por essa possibilidade?
Enquanto essa reflexão não for feita com honestidade, seguiremos repetindo o erro histórico de minimizar, distorcer ou caricaturar aqueles que ousam propor algo além daquilo que o jogo político tradicional permite. E, no caso de Jones Manoel, isso não é apenas injusto — é sintoma de um país que ainda não aprendeu a lidar com a verdadeira diversidade de vozes que podem compor seu futuro.