A decisão de Florianópolis de aprovar o uso da Bíblia como apoio pedagógico em escolas públicas e privadas não é um ato isolado — é mais um capítulo de um projeto de poder que vem avançando silenciosamente por todo o país. Um projeto que mistura religião, política e educação sob o pretexto de “valores morais” e “formação ética”, mas que, na prática, representa uma ameaça à laicidade do Estado e à diversidade cultural que deveria habitar o espaço escolar.
A escola, por essência, é o território do pensamento, da pluralidade e da dúvida. É o espaço onde se deve aprender a questionar o mundo, e não a segui-lo cegamente. Introduzir a Bíblia como ferramenta pedagógica, especialmente sem o devido cuidado de contextualizá-la como obra literária ou documento histórico, é abrir as portas para o proselitismo religioso — um tipo de doutrinação que tenta impor uma única visão de mundo como verdade universal.
O argumento mais comum é o de que “a Bíblia ensina valores”, como respeito, solidariedade, amor ao próximo. Mas esse discurso ignora duas coisas fundamentais. Primeiro: a ética e a moral não são monopólio de nenhuma religião. Segundo: a Bíblia também contém passagens de violência, misoginia, escravidão e intolerância, que precisam ser tratadas com o mesmo olhar crítico que se dá a qualquer outro texto histórico. Sem isso, o “uso pedagógico” se torna um eufemismo para “catequese”.

Nos últimos anos, vimos iniciativas semelhantes surgirem em vários estados e municípios brasileiros. Projetos de lei que defendem “ensino bíblico” ou “valores cristãos” têm sido aprovados em câmaras municipais, quase sempre sob o aplauso de grupos religiosos que enxergam na educação pública uma oportunidade de evangelização em massa. O mesmo discurso que, há séculos, foi usado para justificar colonizações, apagamentos culturais e perseguições a outras crenças, ressurge agora com roupa nova — mais moderna, mais política e mais perigosa.
A Constituição brasileira é clara: o Estado é laico. Isso não significa que o Estado seja ateu, mas que ele não pode privilegiar nem impor qualquer religião. A escola pública, portanto, deve ser o espelho dessa pluralidade. Deve acolher o católico e o evangélico, o umbandista e o ateu, o muçulmano e o indígena que aprende com os mitos de sua aldeia. Quando um governo municipal decide adotar a Bíblia como referência pedagógica, ele não está apenas ferindo o princípio da laicidade — está excluindo simbolicamente milhões de brasileiros que não compartilham dessa fé.
A ironia é que muitos dos que defendem a presença da Bíblia nas escolas são os mesmos que, diante de qualquer menção a religiões de matriz africana, gritam “doutrinação” ou “satanismo”. Um terreiro não pode ser visitado em aula de cultura afro-brasileira, mas a Bíblia pode ser distribuída nos colégios como se fosse material didático. Essa é a seletividade religiosa típica de um país ainda profundamente colonizado em sua mentalidade.
E é justamente por isso que o debate não pode ser apenas jurídico — é político e civilizacional. O uso da Bíblia como apoio pedagógico é um retrocesso simbólico: é a tentativa de reinstalar no imaginário coletivo a ideia de que há uma única fonte legítima de sabedoria e moralidade. É o retorno de uma pedagogia do medo e da culpa, travestida de “formação cidadã”.
Educar é formar pensamento crítico, e pensamento crítico só nasce onde há espaço para discordar, comparar e questionar. O que se ensina quando se transforma um texto religioso em base pedagógica é o contrário disso: ensina-se a obedecer, a aceitar verdades sem análise, a internalizar dogmas como se fossem fatos.
É curioso observar que, enquanto a Bíblia ganha espaço em escolas públicas, o ensino de filosofia, sociologia e artes é constantemente atacado e reduzido. As disciplinas que estimulam reflexão e criatividade são vistas como perigosas, enquanto as que reforçam moralismos e conformismos são incentivadas. O problema, portanto, não é a religião — é o uso da religião como instrumento de controle social.
Há muitas formas legítimas de se abordar a Bíblia em sala de aula. Ela pode ser estudada como literatura, como documento histórico, como elemento de análise simbólica ou cultural. Mas isso exige preparo, formação docente e pluralidade de fontes. Exige que, ao lado da Bíblia, estejam também o Alcorão, os textos do Candomblé, os mitos indígenas, as fábulas africanas. Só assim o ensino religioso, previsto em lei, cumpre seu papel: o de promover o diálogo entre as diversas formas de espiritualidade e pensamento.
No entanto, o que vemos se desenhar é o oposto. O que se quer não é o estudo comparado das religiões, mas a imposição de uma só. O ensino religioso deixa de ser conhecimento e vira catequese institucionalizada — e isso, sim, é perigoso.
Há também uma dimensão política nesse movimento. A Bíblia nas escolas não é apenas uma questão de fé; é uma estratégia de poder. A extrema direita religiosa encontrou na educação uma trincheira para consolidar sua influência. Ao naturalizar o discurso de que “valores cristãos” são sinônimos de moralidade, ela molda gerações inteiras a enxergarem o mundo por uma lente única. E uma sociedade que pensa por uma única lente é uma sociedade incapaz de se transformar.
A defesa da laicidade não é um ataque à fé. É, ao contrário, uma garantia para que todas as fés possam coexistir — inclusive a fé cristã. Um Estado que privilegia uma religião está fadado a discriminar as outras. E uma escola que escolhe um livro sagrado como material pedagógico está ensinando não o respeito à diversidade, mas a hierarquia da crença.
Florianópolis apenas oficializa um processo que já vinha se espalhando por todo o país: a captura do espaço educacional por interesses religiosos e ideológicos. É preciso resistir a isso com a mesma firmeza com que se defende a liberdade de expressão. Porque o próximo passo, quando a Bíblia se torna lei nas escolas, é que a dúvida se torne crime.

