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Eu Sou Raul Seixas e a Liberdade de Ser Fora do Sistema

AI Brain

Terminei agora, em dezembro, a série Raul Seixas: Eu Sou, disponível no Globoplay, e precisei de alguns minutos em silêncio antes de qualquer tentativa de análise. Não porque a série seja pesada no sentido convencional, mas porque ela mexe em camadas profundas — dessas que não pedem comentário imediato, pedem digestão.

A série é protagonizada por Ravel Andrade, e eu não encontro outra palavra para definir sua atuação senão brilhante. Não é exagero, não é empolgação momentânea. É precisão. Ele não interpreta Raul Seixas como caricatura, nem como mito congelado; ele encarna. Há ali corpo, gesto, tempo, olhar, contradição. Pela primeira vez, parei para observar esse ator com real atenção — e saio convencido de que ele conseguiu algo raro: dar vida a Raul sem domesticá-lo.

Raul Seixas, para mim, sempre esteve entre as maiores figuras que nasceram nessas terras chamadas Pindorama, Brasil. Não falo apenas de música. Falo de pensamento. Falo de linguagem. Falo de alguém que produziu filosofia em forma de canção, dissidência em forma de humor, crítica em forma de poesia popular. E a série acerta justamente ao não tentar “explicar” Raul de maneira didática. Ela mostra. E ao mostrar, respeita.

Há uma frase atribuída a Paulo Coelho — parceiro criativo de Raul em diversos momentos — que sempre me marcou: Raul viveu o personagem que ele pensou para si. A série traduz isso com clareza. Não há separação rígida entre vida e obra. Raul não “interpretava” um papel artístico para depois voltar à normalidade. Ele era aquilo que cantava, com tudo que isso implica: genialidade, excesso, fragilidade, lucidez radical.

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E faço aqui um cuidado importante: este texto não é um juízo moral sobre a vida pessoal de Raul. A série nos permite conhecer bastidores, conflitos, dores, inclusive a relação dele com a bebida, que vai se intensificando ao longo do tempo. Isso está lá, de forma crua, sem glamourização. Mas o ponto central, para mim, não é esse. O essencial está no que Raul escreveu, pensou e deixou como legado.

Suas letras são atemporais porque não se limitam à conjuntura imediata. Elas atravessam épocas porque dialogam com camadas profundas do humano. Hermetismo, simbolismo, crítica ao poder, espiritualidade não domesticada, ciência, tecnologia, saberes ancestrais que circularam pela África, pelo Oriente, pelo mundo — tudo isso aparece transfigurado em linguagem popular, acessível, irônica. Raul fazia alta filosofia caber num refrão.

A série é particularmente feliz ao mostrar o processo criativo, e não apenas o produto final. Uma das cenas que mais me marcou foi a construção de “Eu Sou a Mosca que Pousou em Sua Sopa”. Raul está em casa, tentando compor, tentando trabalhar, quando uma mosca insiste. Ela zune, volta, não vai embora. Ele tenta espantar, tenta matar, falha. Horas se passam. Até que, em vez de reagir com raiva, ele observa. E ali nasce a música.

Essa cena é genial porque diz muito mais do que parece. Em plena ditadura militar, num período de censura, repressão e vigilância, Raul transforma o incômodo em metáfora política. A mosca é aquilo que o sistema não consegue eliminar. É o ruído, a perturbação, a consciência que insiste. Raul estava fora da tridimensionalidade — como gosto de pensar — mas atuando dentro do sistema. Fora, mas dentro. Dentro, mas nunca domesticado.

A série mostra esse paradoxo com honestidade: Raul circulava pelos meios institucionais da indústria cultural, mas sua mente estava em outro plano. Ele entendia o jogo, mas não se confundia com ele. Sabia usar o sistema sem se tornar propriedade dele. Isso, por si só, já é uma forma sofisticada de resistência.

Série Raul Seixas

O que mais me impressiona é perceber o quanto Raul continua atual. Assistir à série hoje, num Brasil que ainda lida com censura velada, intolerância ao pensamento dissidente e tentativas constantes de padronização da cultura, é perceber que ele falava de agora. De nós. Do que permanece.

Raul não era um artista “fora do sistema” no sentido romântico e ingênuo. Ele era algo mais complexo: um corpo em atrito permanente com a norma. E a série acerta ao não suavizar isso. Não transforma Raul em herói limpo nem em mártir conveniente. Ele aparece inteiro — potente, contraditório, brilhante.

Por tudo isso, deixo aqui uma recomendação direta, sem rodeios. Se você tirou tempo para ler este texto, tire também tempo para assistir à série Raul Seixas: Eu Sou. Não como quem busca nostalgia, mas como quem busca pensamento. Raul não é passado. Raul é pergunta aberta. E perguntas abertas, como sabemos, são sempre perigosas — e necessárias.

Wanderson Dutch
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016). Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo. É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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