Estudo indica que Salvador pode abrigar o maior cemitério de africanos escravizados da América Latina.

Por séculos, a cidade de Salvador caminhou sobre ossos sem saber. Ou talvez soubesse, mas escolheu esquecer. Escolheu asfaltar a dor, cimentar a história, transformar a brutalidade em anonimato. Agora, um estudo liderado pela pesquisadora Silvana Olivieri, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), reacende uma memória incômoda: Salvador pode ser o maior cemitério de africanos escravizados das Américas.

As investigações indicam que até 150 mil corpos de africanos escravizados, pobres, indigentes, suicidas e encarcerados podem ter sido enterrados no local onde hoje funciona o estacionamento da Santa Casa da Bahia, no bairro de Nazaré. Um lugar cotidiano, de passagem, que pode se revelar o centro de uma das maiores feridas arqueológicas da história brasileira.

O estudo baseia-se em cruzamentos de imagens de satélite, mapas históricos, relatos coloniais e registros da própria igreja, em uma articulação técnico-espiritual que parece resgatar os gritos silenciosos daqueles que foram apagados. A pesquisa reforça a ideia de que a escravidão não foi um evento — foi uma estrutura viva, e seus ossos ainda respiram por debaixo da terra.

Essa revelação carrega consequências. Não apenas históricas, mas simbólicas. O reconhecimento desse sítio arqueológico não diz respeito apenas à memória dos que foram enterrados, mas também ao que nós — vivos — escolhemos lembrar, negar ou silenciar. O Brasil, país que enterrou sua história com pressa, é agora chamado a escavar suas raízes com reverência.

O mapa da dor: geografia da escravidão apagada

Localizado no centro histórico da capital baiana, o terreno investigado fazia parte do antigo Cemitério dos Lázaros, ativo entre os séculos XVIII e XIX. Era o local para onde eram enviados corpos de pessoas consideradas “imprestáveis” pelo sistema colonial-cristão: africanos escravizados recém-chegados, pobres sem nome, condenados, suicidas e doentes mentais.

A escolha de esconder esses corpos sob o manto do esquecimento não foi acidental. O projeto colonial não precisava apenas explorar — ele precisava apagar. Precisava transformar seres humanos em mercadorias e, depois, seus corpos em pó indesejado. A morte do escravizado era tratada como lixo, sem honra, sem nome, sem luto.

Os restos mortais foram cobertos por sucessivas camadas de concreto urbano. E hoje, o que poderia ser um grande memorial africano, é um simples estacionamento — metáfora cruel do que a sociedade brasileira fez com a história dos povos africanos: parou sobre ela, estacionou sobre ela, bloqueou seu movimento.

Mas a terra fala. O passado cobra. E a arqueologia espiritual dos nossos tempos tem um novo chamado: desenterrar o que foi varrido para debaixo do concreto da vergonha.

A estimativa de até 150 mil corpos enterrados no local transforma o cemitério de Salvador em uma das maiores valas comuns de africanos escravizados já registradas no planeta. Para efeito de comparação, o famoso Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro, abriga cerca de 20 a 30 mil pessoas. A dimensão desse achado em Salvador muda a escala da conversa: não estamos mais falando apenas de história local — mas de um trauma transatlântico.

Se confirmada, a descoberta deve acionar protocolos nacionais e internacionais de reconhecimento e preservação da memória. O Ministério Público da Bahia já acompanha o caso, e organizações civis se mobilizam para que o espaço se transforme em um memorial digno, não em mais uma obra de esquecimento.

Mais do que isso: o número 150 mil nos força a olhar com sobriedade para o impacto da escravidão não apenas como um evento passado, mas como uma realidade que moldou as cidades, as famílias, os códigos de valor e até a própria ideia de humanidade no Brasil.

A arqueologia como ferramenta de reparação

A pesquisa liderada por Silvana Olivieri não busca apenas comprovar um fato. Ela busca ativar um campo. Um campo de memória. Um campo de justiça. Um campo vibracional onde os ossos não são apenas restos, mas testemunhas de um crime histórico que ainda reverbera.

A escavação começou oficialmente no dia 14 de maio de 2025. A data, próxima à fatídica assinatura da Lei Áurea (13 de maio), parece simbólica: enquanto a República comemorava o fim formal da escravidão, os pesquisadores voltavam seus olhos ao que a monarquia e os séculos seguintes tentaram esconder — que a liberdade dos pretos nunca veio de fato, e que o Brasil livre nunca libertou seus mortos.

Ao descobrir esse cemitério, o Brasil é chamado não apenas a restaurar um local, mas a reconhecer uma falência moral de séculos. A arqueologia, nesse contexto, não é uma ciência do passado. É um ritual de reparação no presente.

As escavações começaram oficialmente em 14 de maio de 2025, data próxima ao 13 de maio, dia que marca a assinatura da Lei Áurea. A coincidência temporal não passa despercebida. Enquanto parte do Brasil ainda celebra uma abolição formal que não trouxe justiça real, o subsolo baiano sussurra a verdade que não foi ouvida: os mortos não foram libertos. Foram esquecidos.

Esse esquecimento não é neutro. Ele é parte do projeto colonial que continuou operando mesmo depois do fim oficial da escravidão. O apagamento dos cemitérios dos escravizados, a ausência de memória pública e a negligência com os corpos pretos falam mais alto do que qualquer discurso de igualdade racial.

O que está sendo escavado não é apenas um terreno. É o que o Brasil tentou enterrar junto com os africanos: sua história, sua violência, sua dívida.

A cidade que nega seu solo

O bairro de Nazaré, coração da capital baiana, é hoje atravessado por trânsito, prédios, escolas e hospitais. Mas sob seus alicerces repousam histórias que não foram contadas. A cidade que nasceu do sangue africano precisa, agora, decidir se continuará ignorando os ossos que sustentam suas avenidas.

É preciso lembrar que a urbanização brasileira foi construída sobre o silenciamento das marcas da escravidão. Quantos cemitérios foram soterrados? Quantos terreiros viraram prédios? Quantos corpos estão sob nossos pés enquanto caminhamos por calçadas neutras?

A cidade que não escuta sua terra está condenada a repetir suas tragédias. A cidade que não reconhece seus mortos não pode se dizer viva.

O que fazer agora?

A descoberta desse possível cemitério impõe ao Estado, à sociedade civil e às instituições religiosas envolvidas um dever: transformar esse espaço em território de memória. Isso significa criar políticas públicas, investir em preservação, abrir espaço para consulta às comunidades negras, quilombolas, religiosas e acadêmicas.

Mas mais do que isso, significa assumir que o Brasil é um país que ainda vive sob a sombra da escravidão, e que cada reparação possível — mesmo que tardia — deve ser feita com seriedade.

O solo de Salvador está falando. Está se abrindo. Está pedindo justiça.

150 mil corpos não são um detalhe arqueológico. São um monumento invisível à dor, à resistência, e à ausência de reparação.

O que faremos com esse monumento?

Talvez, pela primeira vez, o Brasil tenha a chance de fazer diferente.

De escutar os ossos.

De honrar os mortos.

De transformar o silêncio em presença.

Porque um país só começa a ser livre quando honra os que morreram pela liberdade — mesmo que nunca a tenham vivido.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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