Conheça o Papa que “inventou” o racismo.

Pouca gente sabe, mas parte do que sustentou séculos de escravidão e a ideia de inferioridade de povos africanos começou com a assinatura de um Papa.

No século XV, quando a Europa começava suas viagens marítimas e buscava novas rotas comerciais, um homem de batina deu forma espiritual à violência colonial. O nome dele era Tommaso Parentucelli, mais conhecido como Papa Nicolau V.

Durante seu pontificado, entre 1447 e 1455, Nicolau V publicou documentos que dariam ao poder europeu um novo tipo de licença: a de invadir, capturar e escravizar povos considerados “pagãos” — sobretudo africanos.

Essas ordens não foram apenas cartas políticas: eram bulas papais, seladas com a autoridade de Deus. E nelas nascia uma das mais duradouras justificativas para a escravidão e, mais tarde, para o racismo moderno.

Um Papa culto, mas cúmplice

Nicolau V nasceu na cidade de Sarzana, na Itália, em 1397. Era um homem culto, amante dos livros e das artes, responsável por impulsionar a reconstrução de Roma e por fundar a famosa Biblioteca Vaticana.

Mas a mesma mente que promovia o Humanismo também assinou documentos que legitimaram o comércio de seres humanos.

Em 1452, o Papa escreveu a bula Dum Diversas, autorizando o rei Afonso V de Portugal a atacar “sarracenos, pagãos e inimigos de Cristo”, e a reduzir suas pessoas à servidão perpétua.

Em linguagem direta: o Papa deu permissão divina para escravizar.

Três anos depois, em 1455, Nicolau reforçou e ampliou esse poder com uma nova bula: Romanus Pontifex.

Nela, os portugueses receberam o direito exclusivo de explorar as terras africanas e o aval para capturar e dominar os povos que nelas viviam.

O texto falava em “reduzir suas pessoas à escravidão perpétua” — uma sentença papal que atravessaria oceanos e séculos.

Esses documentos se tornaram o alicerce espiritual da expansão colonial. A Igreja, que deveria proteger almas, passou a ungir a escravidão como missão cristã.

A invenção de uma lógica

É claro que Nicolau V não “inventou” a escravidão — ela existia desde o mundo antigo. O que ele fez foi reinventar o sentido dela, transformando-a numa política global com respaldo religioso.

Até então, a escravidão na Europa era restrita, muitas vezes resultado de guerras ou dívidas.

Mas ao transformar a diferença religiosa em diferença moral, o Papa abriu caminho para que a cor da pele, a origem e o território se tornassem justificativas permanentes para a dominação.

A bula de Nicolau V criou uma nova fronteira simbólica: de um lado, os “cristãos”; do outro, os “infiéis”.

E com o passar do tempo, esse limite espiritual se converteu em um limite racial.

A partir daí, ser não europeu significava ser subjugável.

Essa ideia se espalhou pelos reinos ibéricos, atravessou o Atlântico e moldou a colonização das Américas.

Da cruz ao chicote

Com o selo papal, Portugal ganhou legitimidade para expandir-se pela costa africana.

Navios partiram em busca de ouro, marfim e pessoas.

Cidades inteiras foram saqueadas, famílias destruídas, e uma nova economia nasceu: a do corpo humano como mercadoria.

A escravidão, antes vista como castigo ou consequência de guerra, tornou-se agora um negócio com bênção divina.

E os europeus passaram a acreditar que estavam cumprindo uma missão espiritual — “salvar almas pela servidão”.

Quando as Américas foram invadidas, esse raciocínio já estava maduro.

O que Nicolau V escreveu em 1452 virou, um século depois, o argumento de reis, senhores e teólogos para justificar a escravidão de milhões de africanos.

O que começou como um decreto papal se transformou em um sistema global de desumanização.

O nascimento da hierarquia racial

A partir dessas bulas, a noção de diferença religiosa evoluiu para uma distinção de valor humano.

Era um raciocínio simples — e perverso:

“Se Deus autorizou a escravidão dos infiéis, então há povos naturalmente inferiores.”

Essa semente plantada por Nicolau V germinou durante os séculos seguintes.

O comércio de pessoas cresceu, os impérios coloniais se consolidaram e, com eles, surgiu a necessidade de uma teoria que justificasse a desigualdade.

Foi assim que nasceram as ideias de raça e hierarquia racial.

Séculos depois, cientistas europeus tentariam dar roupagem “biológica” àquilo que já era um projeto de poder.

Mas a raiz era a mesma: a crença de que alguns seres humanos têm menos valor que outros — crença que encontrou no Vaticano do século XV seu primeiro amém.

Quando o poder divino legitima o inferno

A cumplicidade entre religião e poder nunca foi inocente.

A bula papal transformou o ato político de escravizar em ato espiritual.

Ela deu moralidade à violência.

E quando a violência ganha moralidade, ela se perpetua com orgulho.

Durante séculos, reis, navegadores e comerciantes carregaram crucifixos ao lado de correntes.

O mesmo símbolo que pregava amor e compaixão foi usado para marcar ferro e fogo corpos africanos.

Esse paradoxo moldou o Ocidente.

O racismo moderno nasce dessa fusão: a crença europeia de ser portadora da luz divina e a prática de destruir tudo que não reflete essa luz.

E a Igreja, o que fez depois?

Nos séculos seguintes, parte da Igreja tentou reparar o estrago.

Em 1537, o Papa Paulo III publicou a bula Sublimis Deus, declarando que “os índios e todos os outros povos” não deveriam ser privados de liberdade nem de propriedade.

Mais de cem anos depois, Urbano VIII proibiu explicitamente a escravidão indígena nas colônias.

Mas a essa altura, a engrenagem já estava montada.

O comércio transatlântico de pessoas se tornara essencial para as economias europeias.

E o Vaticano — mesmo quando tentou corrigir o curso — nunca revogou oficialmente as bulas que abriram o caminho.

Hoje, parte dos estudiosos e ativistas cobram que o Vaticano reconheça formalmente o papel de Nicolau V nesse processo.

Em 2023, o próprio Papa Francisco chegou a admitir que as chamadas “doutrinas da descoberta” — baseadas nessas antigas bulas — foram injustas e não refletem os ensinamentos de Jesus.

Mas ainda falta o gesto que a história espera: uma revogação simbólica completa desses documentos.

A herança invisível

Os textos assinados no século XV pareciam distantes, mas continuam presentes.

Eles moldaram as bases do colonialismo, do capitalismo e do racismo institucional que ainda estrutura as sociedades ocidentais.

A ideia de que há povos destinados ao trabalho e outros destinados ao domínio não desapareceu — apenas trocou de roupa.

Quando Nicolau V concedeu aos portugueses o direito de “subjugar e escravizar”, ele não apenas escreveu uma bula; ele escreveu o roteiro de uma tragédia planetária.

Da costa africana às plantações do Novo Mundo, milhões de pessoas carregaram no corpo a assinatura de um Papa.

Essa herança não é apenas religiosa. É política, econômica e simbólica.

E entender suas origens é uma forma de desarmar o mito de que a escravidão foi “natural” ou “inevitável”.

Nada disso foi acaso. Foi projeto — com chancela papal.

Um Papa, um império e um mundo dividido

A história de Nicolau V revela algo que o poder raramente admite:

quando a fé se curva ao trono, a injustiça ganha auréola.

O racismo, antes de ser ciência ou preconceito, foi teologia.

Foi pregado em púlpitos, selado com brasões e disseminado em nome da “salvação”.

E, ironicamente, nasceu no coração da Igreja que hoje prega igualdade e amor.

Conhecer esse passado não é apenas exercício histórico — é um espelho.

Porque enquanto a humanidade não encarar a origem sagrada da sua barbárie, seguirá repetindo seus rituais sob novas formas.

Fontes consultadas

  • Bula Dum Diversas (1452) – Papa Nicolau V.
  • Bula Romanus Pontifex (1455).
  • Sublimis Deus (1537) – Papa Paulo III.
  • Commissum Nobis (1639) – Papa Urbano VIII.
  • BBC Brasil: “As bulas papais que legitimaram a escravidão”.
  • The Conversation: “A Igreja e o nascimento da escravidão atlântica”.
  • Encyclopaedia Britannica e History.com: verbetes “Nicolas V” e “Dum Diversas”.
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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