A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris provocou um grande alvoroço entre alguns conservadores brasileiros. Um dos momentos mais polêmicos da festa foi uma releitura do famoso quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, que incluía drag queens representando personagens bíblicos, como Nicky Doll, ex-participante do reality show RuPaul’s Drag Race. Esse trecho foi alvo de críticas por parte de figuras do conservadorismo, como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que consideraram a apresentação uma “zombaria demoníaca da fé cristã” e uma afronta à religião.
Além das controvérsias atuais, algumas facetas do próprio Leonardo da Vinci permanecem menos exploradas ou ocultadas. Apesar de ser amplamente reconhecido por suas habilidades técnicas, estéticas e poéticas, poucos sabem que Leonardo era gay. Ele também possuía outras características “notáveis” para a época: era “filho ilegítimo”, canhoto e vegetariano. Walter Isaacson, um de seus biógrafos, afirma: “Leonardo sabia o que era ser visto, e ver a si mesmo, como diferente”. Isso me faz refletir se a sensação de ser observado de qualquer ângulo na Mona Lisa pode estar relacionada ao modo como Leonardo se sentia em relação à atenção que recebia.
Contrário ao que se poderia imaginar, ser gay no século XV não era um segredo para da Vinci. Ele lidava com sua sexualidade de forma aberta, como atestam os registros de Isaacson: “Há muitas evidências na vida e nos cadernos de Leonardo de que ele não tinha vergonha de seus desejos sexuais. Na verdade, ele parecia se divertir com isso. […] Leonardo estava à vontade com a ideia de ter companhias masculinas e não escondia isso.”
Mesmo assim, Leonardo enfrentou consequências por sua orientação sexual e foi acusado duas vezes de sodomia. Da mesma forma, muitos “Leonardos” ao longo da história e até hoje enfrentam perseguições por serem quem são. Quantos artistas gays, trans, lésbicas ou bissexuais você conhece? Quantos deles são invisibilizados ou têm suas obras desvalorizadas?
É fundamental dar visibilidade a esses indivíduos, tanto do passado quanto do presente. A diversidade humana, em termos de gênero, orientação sexual, raça e outras expressões, é essencial para o universo artístico. Portanto, não faz sentido narrar a vida de figuras importantes para a história sem abordar de maneira completa quem elas foram e como viveram.
Sim, Leonardo da Vinci era gay.
Diversas releituras da mitologia da Última Ceia, frequentemente apresentando um Jesus branco adorado por milhões, já foram feitas ao longo dos anos. No entanto, a indignação atual em relação a uma nova interpretação parece ser, na verdade, uma encenação para a marcação de poder e a reafirmação de crenças que ainda dominam as massas. Esse tipo de revolta é revelador da hipocrisia de muitos crentes, que reagem com fervor quando sua imagem tradicional é desafiada, mas mostram pouca ou nenhuma preocupação com questões sociais urgentes.
Enquanto essas pessoas se enfurecem com mudanças na representação religiosa, observamos uma ausência notável de similar revolta em relação a problemas reais e urgentes que assolam o mundo. Onde está a mesma intensidade de indignação quando se trata de feminicídios, racismo ou outras mazelas sociais que afetam vidas humanas diariamente? A falta de protesto efetivo contra essas injustiças demonstra que a indignação pela releitura da Última Ceia é mais uma questão de poder simbólico e controle do que um verdadeiro compromisso com valores de justiça e humanidade.
A reação desproporcional à arte contemporânea, em contraste com a apatia em face de problemas sociais graves, revela uma hipocrisia profunda: a preocupação com uma imagem religiosa parece eclipsar a urgência de lidar com questões que têm um impacto direto e devastador na vida das pessoas.