Brasil registra 1.492 feminicídios e mais de 87 mil estupros em 2024.

Brasil, 2024. Um país onde nascer mulher é, estatisticamente, assumir um risco diário de sofrer violência. O recém-divulgado Anuário Brasileiro de Segurança Pública escancara o horror com números que gritam por si.

Covarde, ele deu mais de 60 socos no rosto de sua ex-namorada.

O vídeo é insuportável. Um homem, alto, musculoso, símbolo da masculinidade hegemônica que a sociedade tanto valoriza, desferindo mais de 60 socos em sua companheira dentro de um elevador. A câmera registra cada golpe. A brutalidade é metódica. O ódio é frio. Ela tenta resistir, proteger o rosto, implora com o corpo — mas ele não para. A porta do elevador abre, e ele ainda puxa o cabelo dela para arrastá-la de volta. Não há escapatória. O que mais choca não é apenas o ato, mas a certeza com que ele agride. Ele sabe que pode. Que provavelmente nada acontecerá com ele. Que seu corpo branco e seu rosto “apresentável” o blindam. Ele é o retrato vivo do machismo brasileiro: impune, violento, protegido.

Esse caso — mais um entre tantos — não é exceção. Ele é a regra que ousou ser filmada. E essa regra tem números. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios no último ano e mais de 87 mil casos de estupro. Isso significa que a cada hora, dez mulheres são estupradas em algum canto do país. Mulheres que voltam para casa em silêncio. Que desistem de denunciar. Que, muitas vezes, morrem mesmo depois de pedirem ajuda. Só no último levantamento, 121 mulheres assassinadas estavam sob medida protetiva. O Estado sabia. O agressor também. Mesmo assim, elas morreram. A medida protetiva, nesses casos, não foi escudo — foi sentença.

E então chega o caso desse agressor no elevador, estampado com naturalidade nas redes sociais, com seu corpo malhado e óculos cor-de-rosa, fazendo sinal de surfista em fotos de praia. A estética do “bom moço” musculoso e sarado, que parece inofensivo, mas carrega ódio no punho. O Brasil se acostumou a esse perfil: homens que performam gentileza nas redes, mas exercem violência nos bastidores. Não é à toa que muitos ainda tentam suavizar suas atitudes com frases como “foi um momento de fúria” ou “ele não é assim, estava transtornado”. O país que relativiza a dor feminina é o mesmo que justifica o monstro. O mesmo que transforma vítimas em culpadas e agressores em “errantes apaixonados”.

A verdade é uma só: o Brasil é um país que odeia mulheres. E isso não se expressa apenas nos assassinatos ou nos estupros — se expressa na forma como a violência é sistematicamente apagada, diminuída, silenciada. Em como a justiça é lenta quando se trata de proteger o corpo feminino. Em como os agressores se vangloriam de suas ações, certos da impunidade. Em como os tribunais, a mídia, as delegacias e até os lares são coniventes. Em como, no fim, tudo se transforma em mais uma estatística fria. Mais um nome. Mais um rosto. Mais um lamento.

O caso do homem do elevador precisa ser tratado como símbolo — mas não apenas como símbolo da violência física. Ele é também símbolo da falência do Estado, da masculinidade tóxica, da romantização da brutalidade e da covardia coletiva diante do feminicídio. Ele é o resultado direto de uma sociedade que ensinou os homens a odiarem o feminino e ensinou as mulheres a duvidarem de si mesmas. Uma sociedade que incentiva os homens a dominarem, silenciarem, punirem e matarem — e ainda os premia por isso com proteção, fama, e às vezes até com oportunidades televisivas.

Enquanto isso, onde estão os grandes veículos denunciando o sistema? Onde estão os partidos políticos mobilizando a base? Onde estão os homens que dizem “não sou como os outros” fazendo barulho contra essa barbárie? Onde estão as igrejas? As escolas? As famílias? O silêncio também mata. A omissão também espanca.

Esse país não precisa apenas de leis mais duras. Precisa de uma revolução na forma como a masculinidade é construída. Precisa de uma escola que ensine desde cedo o que é consentimento, respeito e dignidade. Precisa de uma justiça que acredite na palavra da vítima. Precisa de uma mídia que pare de sexualizar a dor feminina. Precisa de uma nova ética — uma ética onde o corpo da mulher não seja mais território de guerra.

Porque se esse homem bateu mais de 60 vezes em sua namorada, foi porque ele aprendeu — com o mundo ao seu redor — que a mulher é um objeto que se pode agredir, calar, dominar. E o mundo respondeu a ele com silêncio. De novo. E de novo. E de novo.

Felizmente, o maldito foi preso. Que morra na cadeia.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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