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A indústria do “cidadão de bem” e o mercado do medo.

AI Brain

Quando lutar contra o próprio país vira prova de virtude moral

Há algo de profundamente sintomático no fato de que, nos últimos meses, parte da extrema direita brasileira tenha apostado todas as suas fichas em um inimigo externo para resolver conflitos internos. A recente decisão dos Estados Unidos de retirar sanções relacionadas a Alexandre de Moraes e sua esposa — celebrada com silêncio constrangido por quem prometia um “cerco internacional” — escancarou o vazio dessa estratégia. O castelo de cartas ruiu. E com ele, mais uma narrativa fabricada pelo mercado do medo.

Esse episódio ajuda a iluminar uma figura central desse teatro político: Eduardo Bolsonaro. Autoproclamado defensor da liberdade, ele deixou o Brasil e passou a atuar nos Estados Unidos como uma espécie de lobista informal contra o próprio país. Em vez de defender interesses nacionais, instituições democráticas ou soberania, preferiu atacar o Supremo Tribunal Federal, o sistema eleitoral brasileiro e, sobretudo, Alexandre de Moraes — hoje o principal antagonista do bolsonarismo.

Alexandre de Moraes 2025

Alexandre de Moraes 2025

É aqui que a máscara do chamado “cidadão de bem” começa a cair.

O cidadão de bem que atravessa fronteiras para atacar a própria democracia

A construção simbólica do “cidadão de bem” sempre foi menos sobre ética e mais sobre identidade moral. Trata-se de um personagem que se define não pelo que faz, mas por quem odeia. Não pelo compromisso com o coletivo, mas pela fidelidade a um inimigo comum.

Eduardo Bolsonaro encarna essa contradição de forma quase didática. Em nome da “liberdade”, passou a pressionar governos estrangeiros contra decisões internas do Estado brasileiro. Em nome da “democracia”, atacou instituições legitimadas pelo voto e pela Constituição. Em nome da “pátria”, trabalhou ativamente para desmoralizá-la no exterior.

 

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Não é patriotismo. É militância ressentida travestida de virtude.

Como já alertava Hannah Arendt, movimentos autoritários precisam fabricar inimigos permanentes, porque sem eles o discurso se dissolve. Alexandre de Moraes tornou-se esse inimigo funcional: uma figura personalizada onde se deposita toda a frustração de um projeto político derrotado nas urnas e contido pelas regras do jogo democrático.

O mercado do medo: como se fabrica um inimigo útil

O medo não é um efeito colateral. É o produto.

A indústria do “cidadão de bem” opera como qualquer outro mercado: cria demanda, oferece narrativa e vende sensação de pertencimento. O medo do comunismo, da “ditadura do STF”, da “perseguição aos cristãos”, da “ideologia de gênero” — todos esses fantasmas cumprem a mesma função: organizar afetos, não explicar a realidade.

Religião, moral e patriotismo entram como embalagens emocionais. O conteúdo é sempre o mesmo: um falso inimigo que justifica exceções, ataques e rupturas institucionais. Como escreveu Zygmunt Bauman, sociedades inseguras tendem a trocar liberdade por promessa de ordem. O bolsonarismo apenas radicalizou esse mecanismo.

Eduardo Bolsonaro, ao transformar sua cruzada pessoal contra Moraes numa “luta do bem contra o mal”, ofereceu ao seu público exatamente isso: um roteiro simples para um mundo complexo. Heróis, vilões, mártires. Nada de política real. Nada de projeto de país.

Nietzsche e a moral dos ressentidos

Aqui, Nietzsche ajuda a compreender o fenômeno em profundidade. Em A Genealogia da Moral, ele descreve a moral do ressentimento como aquela que não cria valores próprios, apenas reage. Incapaz de afirmar a vida, precisa negar o outro. Incapaz de construir, dedica-se a acusar.

O “cidadão de bem” contemporâneo é herdeiro direto dessa moral reativa. Ele não propõe um Brasil melhor; ele combate um Brasil imaginário que o ameaça. Sua identidade depende da guerra constante. Sem inimigo, ele entra em colapso.

Por isso, quando a ofensiva internacional contra Alexandre de Moraes fracassa, não há autocrítica. Há silêncio, deslocamento de pauta, novo espantalho. O mercado do medo não pode parar — ele precisa sempre de um novo produto.

Quando moral vira mercadoria e o país vira dano colateral

O aspecto mais grave dessa engrenagem é que, nela, o Brasil vira descartável. Instituições, reputação internacional, estabilidade democrática — tudo pode ser sacrificado em nome da narrativa. A lógica é simples: se o país não serve ao projeto de poder, queimar o país passa a ser aceitável.

Essa não é uma anomalia. É método.

Como observou Achille Mbembe, certas políticas se sustentam na produção constante de inimigos e zonas de exceção. O bolsonarismo adaptou isso ao seu ecossistema digital, religioso e midiático. Eduardo Bolsonaro não é um desvio: é uma expressão coerente dessa lógica.

: o falso bem e o verdadeiro perigo

O “cidadão de bem” não é alguém comprometido com o bem comum. É alguém comprometido com a própria narrativa, mesmo que isso implique atacar o próprio país. O mercado do medo precisa de traidores travestidos de heróis, de cruzadas vazias e de guerras simbólicas intermináveis.

Quando a poeira baixa, sobra o óbvio: não havia conspiração internacional, não havia ditadura, não havia salvação moral. Havia apenas um projeto político incapaz de aceitar limites — e disposto a transformar o medo em mercadoria.

E como toda indústria baseada no pânico, ela não produz futuro. Produz ruído, ressentimento e destruição.

Malditos bolsominions.

Wanderson Dutch
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016). Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo. É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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