A Concepção Africana sobre a Realidade

O que é real? Como você define o “real”? Essa pergunta, apresentada em Matrix, nos convida a refletir profundamente sobre os limites da percepção e da realidade. Se o real é definido por aquilo que podemos sentir, cheirar, saborear e ver, então, sob essa perspectiva, a realidade é apenas uma interpretação dos sinais elétricos processados pelo nosso cérebro. No entanto, será que essa construção sensorial é suficiente para abarcar a essência do que realmente existe?

Platão, um dos maiores filósofos da história ocidental, estudou com sábios egípcios durante 20 anos, absorvendo vastos conhecimentos que posteriormente sistematizou e escreveu em grego, sem, contudo, ser autor original de muitas das ideias que lhe foram atribuídas. Suas reflexões, inspiradas por tradições africanas e egípcias, colocaram as bases para discussões filosóficas sobre o real. A sua famosa Alegoria da Caverna propõe que aquilo que percebemos pode ser apenas sombras de uma verdade maior. No entanto, essa reflexão não nasceu do nada: ela está profundamente enraizada no saber ancestral egípcio, que via a realidade como uma interação dinâmica entre o material e o espiritual.

No mundo contemporâneo, a neurociência e a física quântica reforçam a complexidade do real. O cérebro, embora poderoso, é um criador de atalhos; ele preenche lacunas, reconstrói memórias e nos engana com ilusões. O que vemos e sentimos pode não ser exatamente como as coisas realmente são. Na física quântica, a matéria só parece ganhar forma quando observada, o que sugere que a própria percepção influencia a realidade. Esses avanços científicos ecoam ideias presentes em saberes antigos, incluindo o pensamento africano e egípcio, que entendiam o real como algo profundamente interconectado e não limitado ao que os sentidos captam.

E há ainda a dimensão cultural. A ideia de “realidade” não é universal; ela varia de acordo com as tradições, crenças e valores de cada sociedade. Enquanto o Ocidente tem uma tendência a fragmentar o material e o espiritual, muitas culturas africanas – incluindo as que influenciaram Platão – veem esses aspectos como inseparáveis. O real, nesse contexto, não é apenas o que os sentidos percebem, mas o que é vivido em harmonia com o universo e as relações humanas.

A realidade é, portanto, muito mais do que uma mera interpretação dos sentidos. Ela é uma construção subjetiva que envolve cultura, memória, experiência e conexão. Talvez a grande lição seja reconhecer que o real não é algo fixo ou absoluto, mas um reflexo da maneira como nos relacionamos com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Afinal, como sugerem as sabedorias ancestrais que Platão tão bem conhecia, o que percebemos é apenas uma pequena fração de um todo muito maior.

A Concepção Africana sobre a Realidade

Representação de Exu Mensageiro Jovem.

No livro Os Filósofos Egípcios, Vozes Ancestrais Africanas, de Molfefi Kete Asante, temos a seguinte afirmação:

“A concepção africana da realidade é muitas vezes difícil para aqueles educados no Ocidente ou influenciados pelo Ocidente, onde a noção de realidade está tão atolada no empirismo, dependente apenas da operação dos sentidos. Existe uma complicação adicional, porque no Ocidente é muito fácil separar o corpo da mente e o eu dos outros. Este é um problema de concretude e unidade. Na Ásia, o problema é outro, desafiando muitas vezes o personalismo e a consubstanciação concreta do espírito que se encontra na África. Por um conceito de espírito mais difuso, onde nada material existe e toda materialidade é uma ilusão. É o abandono do ego que está muitas vezes no cerne das culturas asiáticas. Nas culturas africanas, o ego é real e a materialidade é concreta, mas administrável sob a influência do costume e da tradição baseada na mutualidade humana.”

A partir dessa base, é possível compreender que a visão africana da realidade transcende a perspectiva fragmentada e dualista predominante no Ocidente e a abordagem mais espiritualizada e difusa da Ásia. No entanto, ela carrega características únicas que a tornam uma visão de mundo integrada, concreta e profundamente enraizada nas relações humanas e na interação com o meio ambiente.

A Unidade entre o Concreto e o Espiritual

Na concepção africana, o mundo não é fragmentado entre o material e o espiritual, como no pensamento ocidental. Aqui, ambos coexistem em uma interdependência inseparável. Tudo está interconectado: os seres humanos, a natureza e o divino formam uma rede viva que transcende a individualidade. Isso é essencial para entender por que conceitos como a mutualidade humana, os costumes e as tradições desempenham um papel central.

Enquanto no Ocidente há uma tendência de dissociar corpo e mente, criando dicotomias entre razão e emoção, indivíduo e comunidade, a visão africana privilegia uma abordagem holística. O eu não existe isoladamente, mas como parte de um coletivo. O que é real não está apenas no que se vê ou sente, mas também no que se experimenta em comunidade.

A Materialidade Administrável

A materialidade, na perspectiva africana, é vista como concreta e real, mas sempre moldada por valores culturais e tradições. O conceito de “administrável” sugere que o tangível não é algo absoluto ou fixo; ele pode ser transformado pelo costume, pela espiritualidade e pelas dinâmicas sociais. Diferentemente das tradições asiáticas que frequentemente veem a materialidade como uma ilusão, na África, ela é entendida como um meio pelo qual o ser humano interage com o divino e com os outros.

Por isso, atividades como a agricultura, a horticultura e a pecuária não são apenas formas de subsistência, mas representações simbólicas de conexão com o universo. O agricultor, como bem exemplificado no caso do Mali e do Senegal, é visto como alguém próximo do divino, reforçando a ideia de que o trabalho e a espiritualidade são indissociáveis.

Multiculturalismo e Semelhanças Subjacentes

Embora a África seja profundamente multicultural, com uma variedade impressionante de línguas, costumes e tradições, há valores compartilhados que atravessam essas diferenças. Desde os tempos mais remotos, povos africanos desenvolveram maneiras semelhantes de interagir com o universo, o meio ambiente e o sagrado. Essa unidade subjacente não elimina as particularidades locais, mas cria uma base comum que sustenta a riqueza cultural do continente.

A ideia de civilização, nesse contexto, está profundamente ligada à partilha de mitos fundamentais e valores espirituais. Apesar das diferenças nos nomes e formas de expressão, as experiências humanas, como o cultivo da terra ou o respeito pelas forças da natureza, são vistas como universais.

O Papel das Relações Humanas

Na visão africana, as relações humanas não são apenas sociais, mas cósmicas. A mutualidade, que pode ser traduzida como uma interdependência profunda, é o alicerce da convivência. Isso se reflete em práticas como a resolução comunitária de conflitos, o respeito aos mais velhos e a valorização da coletividade sobre o individualismo.

Os costumes, nesse sentido, não são apenas regras sociais, mas instrumentos que conectam o passado, o presente e o futuro, permitindo que o coletivo avance sem perder sua essência.

Conclusão: Uma Visão de Civilização Comum

A concepção africana da realidade nos oferece uma perspectiva poderosa e transformadora sobre o que significa existir no mundo. Ela nos ensina que o material e o espiritual, o individual e o coletivo, o humano e o divino não são forças opostas, mas partes de um todo maior.

Compreender essa visão é essencial para valorizar não apenas as contribuições culturais e filosóficas da África, mas também para reavaliar nossa relação com o mundo e com os outros. Como o Egito, citado como uma das civilizações mais prodigiosas da África, demonstrou, o pensamento africano tem muito a oferecer sobre as relações humanas, sua profundidade e sua capacidade de transformação. É uma lição que continua atual e necessária.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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