A ciência que se orgulha dos seus avanços esconde os corpos pretos que usou como cobaias.

Quando se fala em avanços médicos, em universidades renomadas ou em prêmios Nobel, pouco se menciona o que sustentou — de forma violenta e silenciosa — parte desse progresso: o corpo preto.

Não o corpo preto enquanto sujeito, mas enquanto objeto, cobaia, estatística viva e morta.

Por séculos, a medicina ocidental utilizou pessoas africanas escravizadas e seus descendentes para conduzir experimentos sem consentimento, reforçando teorias racistas e testando métodos que hoje salvam milhões — mas nasceram do sofrimento de poucos.

Este texto não é só para chocar. É para lembrar. Porque aquilo que não é lembrado, se repete.

James Marion Sims e as cirurgias ginecológicas sem anestesia

Em meados dos anos 1840, James Marion Sims, médico americano considerado “pai da ginecologia moderna”, conduziu experimentos cirúrgicos repetidos em mulheres africanas escravizadas, sem qualquer tipo de anestesia.

Sims não via crueldade nisso. Ele acreditava — como boa parte da ciência da época — que o corpo africano “suportava mais dor”.

A tortura ginecológica se tornou o berço de técnicas usadas até hoje em cirurgias reparadoras. As mulheres que foram submetidas aos bisturis de Sims não tiveram nome registrado na história. Seus corpos serviram como campo de prova, sua dor foi normalizada, sua resistência ignorada.

Tuskegee: 40 anos enganando homens pretos

Avançando no tempo para o século XX, chegamos ao Estudo da Sífilis de Tuskegee (1932-1972), conduzido pelo Serviço de Saúde Pública dos EUA.

Por 40 anos, cerca de 600 homens negros pobres do Alabama foram observados enquanto a doença avançava. Eles foram ludibriados: diziam a eles que estavam recebendo tratamento gratuito, quando na verdade serviam como um gigantesco experimento para analisar o progresso natural da sífilis.

Mesmo após a descoberta da penicilina, em 1947, o tratamento foi propositalmente negado. Muitos morreram. Outros passaram a doença para esposas e filhos nasceram infectados. O custo humano dessa pseudo-ciência foi incalculável.

Brasil: vacinas testadas em corpos escravizados

No Brasil do século XIX, havia fazendas inteiras onde se aplicavam vacinas contra varíola primeiro nos africanos escravizados, para depois se ter “segurança” de uso em brancos livres.

A ideia não era proteger o escravizado. Era usá-lo como escudo sanitário, para garantir que o “patrimônio humano” não morresse antes de render trabalho — e ao mesmo tempo proteger a elite de contágio.

Há relatos de médicos que circulavam pelas senzalas inoculando de forma precária, gerando infecções e mortes subsequentes, dados que jamais entraram em relatórios oficiais. A história do Brasil registra campanhas sanitárias, mas raramente conta sobre os corpos negros sacrificados para a saúde pública prosperar.

Henrietta Lacks: o DNA imortal sem consentimento

Em 1951, nos EUA, Henrietta Lacks, uma mulher negra humilde, teve células do seu colo do útero coletadas sem autorização enquanto tratava um câncer agressivo.

Essas células se tornaram as células HeLa, a primeira linhagem celular humana imortal cultivada em laboratório, responsável por incontáveis pesquisas sobre câncer, AIDS, vacinas, fertilidade, e mais.

Durante décadas, empresas farmacêuticas lucraram bilhões com experimentos feitos a partir de Henrietta, sem que sua família sequer fosse informada. O corpo negro novamente transformado em recurso, dado, mercadoria — mesmo após a morte.

A Vênus Negra: violentada viva e profanada morta

Em 1810, Saartjie Baartman, sul-africana khoisan, foi levada para Londres e Paris, exibida em feiras como “Vênus Hotentote”, por causa de suas nádegas proeminentes, consideradas exóticas pelos europeus.

Após morrer em 1815, seu corpo foi dissecado. Seu cérebro, ossos e genitais ficaram em exibição no Museu do Homem em Paris até 1974, perpetuando a violência muito além da vida.

Só em 2002 seus restos foram repatriados e sepultados na África do Sul. Saartjie virou símbolo da brutalidade científica e cultural que transformou o corpo negro em espetáculo, em dado anatômico, em troféu mórbido.

A medicina só avança quando reconhece sua história completa

Essas histórias não são exceções. São fundações silenciosas do edifício médico ocidental.

Enquanto celebramos cirurgias sofisticadas e vacinas revolucionárias, raramente olhamos para o custo humano pago por aqueles que não escolheram ser parte desses experimentos.

O corpo preto sustentou a ciência. À força.

Lembrar é o mínimo. Exigir reparação é o próximo passo.

Referências para ir além

📚 Em português:

  • “O Espetáculo das Raças” — Lilia Moritz Schwarcz
  • “A invenção das raças” — Roberto Cardoso de Oliveira
  • Artigos da Fiocruz sobre história da vacinação no Brasil

📖 Em inglês:

  • “Medical Apartheid” — Harriet A. Washington
  • “The Immortal Life of Henrietta Lacks” — Rebecca Skloot
  • Artigos acadêmicos sobre Tuskegee (disponíveis em NIH.gov)
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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