A ideia de que o observador não está separado do objeto observado atravessa fronteiras da filosofia, da neurociência e da física moderna. Por séculos, acreditamos que o mundo “está lá fora” e que nós, sujeitos conscientes, apenas o observamos de forma neutra. Mas os estudos mais avançados mostram o contrário: ao olhar, ao pensar, ao sentir, estamos inevitavelmente entrelaçados com aquilo que observamos. O mundo não é palco fixo, é campo interativo.
Albert Einstein, que compreendeu como poucos o tecido da realidade, dizia: “O ser humano é parte de um todo que chamamos universo, uma parte limitada no tempo e no espaço. Ele se experimenta a si mesmo como algo separado do resto — uma ilusão de ótica da consciência.” Essa “ilusão de ótica” é justamente o que sustenta a sensação de separação. Quando o véu cai, percebemos que tudo é relação.
Na física quântica, o chamado efeito do observador é prova desse entrelaçamento. Experimentos como o da dupla fenda mostram que partículas de luz e matéria se comportam de maneira diferente quando são observadas. A simples presença do observador altera o resultado. Isso não é metáfora: é ciência. O que chamamos de realidade não existe de forma independente; ela se atualiza a cada ato de observação.
A neurociência também aponta para esse fenômeno. Pesquisadores como Antonio Damasio e V.S. Ramachandran mostraram que a percepção não é um espelho fiel do mundo externo, mas uma construção contínua do cérebro. Nossos neurônios disparam, reorganizam memórias, projetam expectativas. O objeto observado nunca é “puro”; ele chega filtrado por camadas de sentido que nós mesmos criamos. A rosa que você contempla não é apenas pétala e caule, mas a história que sua mente tece sobre ela.
Quando olhamos pela lente da ancestralidade, o quadro se amplia. Povos africanos e ameríndios sempre compreenderam o mundo como rede de relações. O caçador não está separado do animal caçado; o rio não está separado do corpo que nele se banha. A vida é tecida por vínculos invisíveis, e a separação é apenas uma ficção criada pelo olhar ocidental moderno. Essa visão ecoa no princípio africano de Ubuntu: “Eu sou porque nós somos.” Aqui, o observador e o observado se dissolvem num mesmo campo de existência.
A psicologia também confirma. Carl Jung já dizia que aquilo que vemos fora reflete conteúdos internos — o inconsciente se projeta no objeto. O “outro” que você observa é também espelho do que você carrega. A neurociência contemporânea reforça isso com a descoberta dos neurônios-espelho, revelada por Giacomo Rizzolatti nos anos 1990. Esses neurônios se ativam tanto quando realizamos uma ação quanto quando vemos outra pessoa realizá-la. Ou seja, o corpo não distingue radicalmente o eu do outro; o observador participa do movimento alheio.
No campo social, essa compreensão tem efeitos profundos. Quando olhamos comunidades historicamente marginalizadas e as reduzimos a estereótipos, não estamos apenas descrevendo: estamos criando realidades que moldam políticas, práticas e relações. O olhar se torna força de poder. Por isso, descolonizar o olhar é ato urgente. Reconhecer o outro como sujeito pleno significa reconhecer que, ao observar, também somos transformados.
A espiritualidade africana ensina que tudo vibra em interconexão. Orixás não estão “fora” do devoto; eles se manifestam no corpo, no gesto, no canto. O ritual é a prova de que a divindade e o humano se fundem no ato vivido. O observador e o observado tornam-se uma só experiência.
Do ponto de vista prático, essa consciência muda nossa relação com o cotidiano. Ao olhar alguém, não apenas “vemos”, mas influenciamos. O tom do olhar pode curar ou ferir. Ao contemplar o mundo natural, não apenas constatamos paisagens, mas interagimos com um ecossistema vivo. E ao nos observarmos por dentro — pensamentos, emoções, memórias — também alteramos o que encontramos.
Em resumo: não existe neutralidade. Olhar é sempre criar. E se somos criadores a cada instante, a pergunta que se impõe é: que realidade você está ajudando a sustentar com o seu olhar?👀