Charlie Kirk não era apenas um ativista conservador: era uma figura icônica do extremismo religioso-político norte-americano, um líder da nova extrema-direita que misturava nacionalismo, cristianismo fundamentalista, retórica antiminoria e polarização como estratégia de crescimento. Ele cofundou a Turning Point USA, instituição que se tornou referência para jovens radicais conservadores, pregação anti-“woke”, desdém por identidades marginalizadas, teorias conspiratórias sobre imigração, raça, gênero, imprensa, diversidade e inclusão. Sua fé evangelista virou arma política; sua noção de patriotismo se confundia com superioridade cultural; sua defesa de armas incluía a ideia de que “algumas mortes eram um preço aceitável” para preservação de direitos constitucionais.
Ele frequentemente propagava que a civilização ocidental estaria em risco por causa de minorias que exigiam voz, por causa de supostos doutrimentos marxistas nas escolas, por causa da “ameaça antirracista” que apagaria a cultura branca ou cristã. Falava da liberdade de expressão quando lhe interessava, mas também ameaçava, vulgarizava, atacava minorias — negros, imigrantes, LGBTQ+ — com “piadas”, “frases fora de contexto”, desqualificações ruidosas. Isso não é só oposição política; é fanatismo, radicalização ideológica.
Quem é o suspeito — o espelho distorcido do discurso
O homem acusado de assassiná-lo, Tyler James Robinson, 22 anos, de Utah, apresenta um perfil perturbadoramente revelador do quanto o discurso agressivo de gente como Kirk ultrapassa os limites do simbólico e entra no terreno do real. Robinson cresceu em uma comunidade pequena, tranquila, com fortes laços religiosos — foi criado em família que frequentava a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons). Ele foi descrito por vizinhos como um jovem “normal”, educado, aparentemente sem histórico criminal ou comportamentos violentos públicos, estudante de curso técnico, com bons resultados acadêmicos. (theguardian.com)
Mas, segundo relatos oficiais, Robinson nos últimos tempos vinha se envolvendo com comunidades online radicais, postagens e conversas que expressavam ódio, desconfiança, teorias conspiratórias, e houve referência direta a Kirk como alvo de antagonismo. Havia mensagens perturbadoras, casquilhos de munição com inscrições políticas anti-fascistas ou mensagens agressivas, indicando que ele havia absorvido o discurso de luta identitária, de confronto, de “nós contra eles” num sentido militante.
Ou seja: Robinson é produto desse ecossistema. Criança cristã, exposto a valores religiosos tradicionais, família, escola, igreja — mas também ao discurso público ultra-direitista de Kirk que rotineiramente afirmava que “o outro lado”, as minorias, as vozes dissidentes, deveriam ser contidas, deslegitimadas, combatidas. Se Robinson agiu como suspeito, seu ato não chegou do nada: foi alimentado pelo ressentimento, pela polarização, pelo cheiro de inimigo que estava em todo discurso extremista.
O cinismo do discurso de “martírio”
É aí que entra o cinismo grotesco: a declaração da viúva, de que Kirk “foi morto por pregar patriotismo, fé e amor a Deus”, soa como narrativa esperada, mas também como dissimulação seletiva. Sim, Kirk falava de fé, defendia Deus, esperança e patriotismo — mas também falava de exclusão sob capa de virtude; também falava de nacionalismo identitário; também fomentava a ideia de que alguns cidadãos seriam mais cidadãos que outros, sob justificativa de cultura, raça ou crença religiosa.
Apresentar sua morte como sacrifício divino ou martírio moral omite o fato de que Kirk investiu por anos em construir uma onda de confronto cultural, de alimentar tal clima que palavras não fossem apenas ideias, mas gritos de guerra simbólicos. É hipótese de que Robinson tenha reagido a esse quadro — talvez em desespero, talvez em revolta — mas não é hipotético que o discurso público de Kirk instalou um campo de hostilidade, de antagonismo, de “a gente vs o resto”.
A narrativa de “morrer por patriota” está intimamente associada à ideia de que ele não só pregava valores positivos, mas também botava inimigos morais entre as minorias, entre os que questionavam sua versão de “pátria”, de “fé”, de “liberdade”. Esse tipo de discurso radical cria espadas, muros, divisões. Quando o quiz da realidade exige consequências — violência, retaliação — ele vem. E depois? O discurso do martírio, de que “me mataram por amor a Deus”, que “me mataram por pregar a verdade”, serve para selar o legado, para projetar imagem de vítima-santo, para mobilizar seguidores, esconder o estrago do ódio que propaga.
Radicalismo, discurso de ódio e responsabilidade
Uma extrema-direita radical como aquela que Charlie Kirk ajudou a construir vive da provocação constante: do medo do diferente, da demonização do que é “fora do nosso círculo”. Quando pessoas negras protestam, ele as acusa de vitimismo; quando imigrantes falam de integração, ele fala de invasão; quando o movimento por diversidade insiste, ele afirma que isso destrói meritocracia ou liberdade de palavra. Ele trabalha assim: dividir para conquistar seguidores inseguros, incitados pelo ressentimento, pelo medo de perda cultural ou econômica.
Mais grave ainda é a reciprocidade previsível desse modelo. Pessoas expostas repetidamente a discursos de ódio, de desumanização, de parcialidade moral, podem reagir de várias maneiras: silenciar, se retirar, protestar, sim — ou radicalizar, buscar vingança simbólica ou real. Esse ciclo é combustível para casos como o de Robinson. Ele — jovem, branco, criado em ambiente cristão — não se encaixa como figura externa ao discurso de Kirk: ele era justamente parte do público que Kirk queria como base, mas parece ter rejeitado o papel de espectador dócil, e sentiu, possivelmente, que também foi martirizado pela retórica dominante.
O assassinato não apaga o passado
É urgente dizer: atrozes como são, assassinatos não resolvem ideias; assassinatos apenas expõem fissuras que já existiam. A morte de Kirk não limpa os seus discursos radicais; ela ilumina quão perigosas são as palavras que se simplificam como “defesa da fé”, “verdade patriótica”, quando à sombra delas se permite o culto ao ódio. Seu legado — propaganda anti-igualdade, minimização de racismo, discursos de conspiracionismo religioso, antifeminismo, antitrans, e medo do “marxismo cultural” — não morreu com ele. Ele vive nos ecos, nas redes, nos corações de quem se sentiu excluído ou inflamado.
E o cinismo de transformar sua morte em símbolo de pureza moral é duplo: ele exige de quem resta não crítica, exige reverência. Quem levantar a voz para apontar os danos — pessoas negras, imigrantes, professores, minorias — será atacado por profanar coisa sagrada. É estratégia: a vítima se torna santificada, a crítica se torna heresia.