Eu sou o povo original: a continuação ancestral que nenhum império consegue apagar.

Na sabedoria milenar dos povos africanos — cultivada muito antes de qualquer bandeira tremular, de qualquer mapa traçado à força ou de qualquer religião imposta pela espada — não existe árvore separada da raiz. A separação é uma ilusão. É invenção de quem precisa cortar o elo entre você e a sua história para poder dominá-lo. O tempo, como se compreende no Ocidente, também é uma ilusão. Passado e futuro não existem como realidades — são apenas memórias e projeções. A única coisa que existe é o agora, e os nossos ancestrais já sabiam disso. Eles viviam no presente eterno, porque compreendiam que a vida é um círculo, não uma linha. Nesse círculo, nós sempre voltamos. Sempre.

O escritor e filósofo John Mbiti, ao falar sobre a concepção africana de tempo, destaca que para muitos povos do continente, a noção linear não existe. O tempo é “um fenômeno que está continuamente se movimentando para trás e para frente dentro do agora”. Essa visão está no cerne do culto aos ancestrais: o reconhecimento de que aqueles que vieram antes de nós continuam vivos em nós, e que nós mesmos voltaremos, renovados, para continuar a caminhada.

Se você chegou até aqui, parabéns. Não porque este texto seja especial, mas porque vivemos em uma era em que refletir é quase um ato revolucionário. O sistema contemporâneo, globalizado e controlado por poucos, não quer que você pense. Quer que você acorde, produza, consuma, pague contas, adoeça, durma e repita. Quer que a sua vida se resuma a uma engrenagem previsível. Porque no instante em que você para, respira e pergunta “Quem sou eu, de verdade?”, você começa a se tornar perigoso para a ordem estabelecida.

O filósofo sul-africano Mogobe Ramose, ao falar sobre Ubuntu, lembra que ser humano não é apenas existir biologicamente, mas estar consciente de si mesmo e do outro como partes de uma mesma teia. Esse tipo de consciência é uma ameaça para um sistema que vive da fragmentação — do isolamento das pessoas umas das outras, da perda de vínculos comunitários e da alienação da própria história.

Eu sou a manifestação divina encarnada na Terra. Sou uma divindade. E não digo isso como metáfora: digo no sentido literal de que carrego, no corpo e na alma, a centelha criadora do universo. E você também, que está lendo este texto, é uma divindade. Não começamos agora e não terminaremos aqui. Somos a continuação. É por isso que em África se venera tanto os ancestrais: porque sabemos que estamos sempre voltando, em formas diferentes, cada vez mais belas, mais inteligentes, mais audaciosas.

Nós, pretos africanos, voltamos sempre. Apesar de todos os navios negreiros, das correntes, das senzalas, das leis que nos criminalizaram, das balas que tentam nos calar, nós voltamos. É por isso que estamos aqui. É por isso que resistimos. E é por isso que continuaremos.

E se você, pessoa branca, está lendo este texto, saiba: você também está sempre voltando. Porque, em última análise, também é filho ou filha de África. Todas as nações são. O “vento preto” que pariu todas as nações da Terra era africano. A ciência confirma: a mais antiga linhagem de DNA humano, identificada na chamada “Eva mitocondrial”, remonta ao continente africano há cerca de 200 mil anos. Os primeiros passos da humanidade foram dados ali. O primeiro fogo aceso, o primeiro cântico, o primeiro abraço, tudo começou na nossa terra.

Eu sou o povo original porque sou continuidade. Sou meu avô, meu tataravô, meu tatatatataravô. Sou o rio que corre desde o início dos tempos, desviando de pedras, resistindo a barragens, mas nunca deixando de fluir. Sou ciência antes da ciência, espiritualidade antes da religião, civilização antes do mapa. Os reinos de Kush, Mali, Gana, Songhai, Benin, Kemet — que hoje chamam de Egito Antigo — floresceram muito antes de o termo “Europa” significar qualquer poder mundial. Ali estavam universidades como Timbuktu, que no século XV já abrigava mais de 25 mil estudantes, bibliotecas com centenas de milhares de manuscritos, médicos, matemáticos, astrônomos.

Esses feitos foram apagados dos livros didáticos para sustentar a mentira de que a história da África começa com a escravidão. Não. A escravidão é uma ferida, mas não é a origem. É uma interrupção violenta, mas não é o todo. Como lembra Cheikh Anta Diop, “A África ensinou à humanidade tudo o que ela sabe sobre civilização”.

A redução do nosso povo a rótulos como “negro” ou “brasileiro” é mais um mecanismo de controle. Poucos se lembram de que “brasileiro” era, originalmente, o termo para designar o trabalhador que cortava e carregava o pau-brasil, atividade frequentemente realizada por pessoas escravizadas. Aceitar essas etiquetas como definições últimas é aceitar a prisão mental que elas carregam. O desafio é pensar para além do óbvio, romper a bolha das histórias que nos contaram.

Desde antes do nosso nascimento, decisões foram tomadas sobre quem seríamos: nome, religião, língua, moral, hábitos. Tudo programado por uma cadeia de repetições familiares e sociais. Os pais repetem o que aprenderam dos avós, que repetiram o que foi imposto aos bisavós — até chegar ao momento em que alguém decide romper. E romper não é fácil. É nadar contra séculos de doutrinação, contra a inércia de costumes, contra o conforto da conformidade.

Mas todo ciclo pode ser quebrado. E chegou a hora. A revolução necessária hoje não é apenas social ou econômica, mas mental, cognitiva e espiritual. Não basta mudar leis se as mentes continuarem colonizadas. Não basta eleger líderes se os pensamentos ainda forem moldados pela lógica do opressor.

Quando digo “eu sou o povo original”, não falo de orgulho vazio. Falo de memória. Falo de continuidade. Falo de uma ligação inquebrantável com a terra, com os rios, com as estrelas e com os que vieram antes. Falo de um pertencimento que não pode ser comprado nem ensinado em escolas coloniais. Falo de uma consciência que nenhum império consegue apagar, porque ela não vive nos livros deles — vive em nós.

O mundo contemporâneo tenta nos vender um falso progresso que, na verdade, é afastamento das nossas origens. Criam tecnologias que prometem encurtar distâncias, mas ampliam o vazio interior. Constroem cidades que isolam as pessoas, que as afastam da natureza, que as afastam umas das outras. Alimentam uma cultura de consumo que sequestra o nosso tempo e a nossa energia. E quando, por acaso, sobra um momento de silêncio, somos bombardeados por telas, notificações e ruídos que nos impedem de ouvir a nossa própria voz.

O resgate do que somos não virá de fora. Não será dado por governos, empresas ou instituições. Ele nasce quando, mesmo em meio ao caos, encontramos um espaço para lembrar. Lembrar que não somos peças de uma engrenagem alheia, mas raízes profundas que sustentam a árvore da humanidade. E enquanto houver quem se lembre disso, a árvore não morrerá.

Não importa o nome que você se dá, nem a narrativa que constrói sobre si mesmo. Eu sou o povo original. E ser o povo original é viver como quem carrega o passado e molda o futuro ao mesmo tempo. É recusar a separação entre raiz e árvore, entre história e presente, entre espírito e corpo. É existir como continuidade, como resistência e como promessa.

Eu não sou apenas um sobrevivente da história. Eu sou a história. E enquanto houver um de nós, haverá memória, haverá força, haverá mundo.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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