Quando eu falo em limpeza étnica, não estou usando um termo figurativo, nem recorrendo a hipérboles militantes. Estou falando de uma estratégia concreta, global, brutal — reconhecida em tratados internacionais — que envolve o extermínio sistemático de grupos racializados, seja por armas, por fome, por deslocamentos forçados ou por abandono institucional. É o que ocorre hoje na Palestina, onde um povo é massacrado em plena luz do dia por um regime colonial, armado e blindado pelo Ocidente. É o que ocorre na República Democrática do Congo, onde populações inteiras são eliminadas em nome do controle de minérios raros, enquanto o mundo capitalista finge não ver. O sangue africano e árabe derramado nessas regiões não é um acidente da guerra — é o preço de uma ordem global que só sobrevive alimentando-se da morte de corpos não brancos.
As mesmas armas que matam crianças em Gaza e aldeias inteiras no Congo são vendidas, financiadas e testadas nas favelas brasileiras. O que ocorre no Brasil, com a execução sistemática de pessoas pretas, principalmente nas periferias, é parte dessa mesma lógica. A militarização da pobreza, o patrulhamento dos territórios racializados, os helicópteros atirando de cima, a blindagem jurídica dos assassinos de farda — tudo isso é limpeza étnica disfarçada de política de segurança. É o mesmo projeto de aniquilação com métodos diferentes. Aqui, não há bombas caindo do céu. Há balas de fuzil perfurando corpos dentro de becos. O Estado brasileiro, como outros Estados racialmente estruturados, sabe quem deve viver e quem pode morrer. E morrem sempre os mesmos.
O Brasil nunca foi uma democracia real. Desde 1888, o que houve foi uma transição administrativa entre o regime escravocrata e um modelo republicano que manteve intacta a lógica do poder: os donos da terra continuaram donos do Estado, da Justiça, da polícia, da mídia e das armas. A abolição foi um acordo entre senhores. Os corpos libertos jamais foram incluídos no pacto da cidadania. O que vivemos, até hoje, é a manutenção de um país que apenas mudou de roupa — mas nunca trocou de espírito.
O Estado brasileiro, tal como o conhecemos, é herdeiro direto da lavoura escravocrata. Os filhos dos senhores tornaram-se juízes, promotores, governadores, banqueiros, donos de conglomerados religiosos e líderes políticos. E a favela? A favela é o esgoto da República. O local de descarte de tudo que esse país ainda recusa reconhecer como humano. O aparato policial que patrulha as comunidades é o mesmo chicote de ontem — agora com farda, fuzil e escudo jurídico.
A Justiça Militar, que agora absolve os policiais acusados de fraudar a cena do assassinato de Kathleen Romeu, não age fora da curva: ela é a própria engrenagem da impunidade. Trata-se de um tribunal montado para proteger os interesses do Estado contra os pobres, e não para garantir justiça. PMs julgando PMs dentro de uma estrutura forjada para não punir seus próprios agentes. É o escravocrata assinando a própria inocência diante do sangue derramado.
E o que há por trás disso tudo? A normalização do genocídio. A naturalização de que, em um país racialmente hierarquizado, corpos pretos e periféricos podem ser eliminados sob o argumento da ordem pública. A militarização das favelas é o braço armado de um projeto colonial jamais desativado. O que o Estado brasileiro faz não é segurança — é gestão seletiva da morte. E Kathleen é mais uma vítima dessa engrenagem.
Kathleen Romeu caminhava com a avó quando foi atingida por um tiro de fuzil no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro, em junho de 2021. Estava grávida. Desarmada. Sem ameaça. Era mais uma vida preta gestando o que o Estado tanto teme: o futuro. A resposta foi rápida: execução.
Agora, em 2025, a Justiça Militar decidiu inocentar os três policiais acusados de alterar a cena do crime. Um juiz votou pela condenação. Mas os demais — todos oficiais da própria PM — optaram pela absolvição por “falta de provas”. Não houve justiça. Houve encenação.
A tragédia não é apenas a bala que tirou a vida de Kathleen. É todo o sistema que, do disparo à absolvição, trabalha em perfeita harmonia. Do dedo no gatilho ao silêncio da mídia hegemônica. Da ausência de políticas públicas até a blindagem jurídica. Tudo opera com precisão cirúrgica — como uma engrenagem de uma máquina de moer gente.
Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, já denunciava: o sistema colonial cria a categoria do “sub-humano” para justificar sua violência. No Brasil, essa sub-humanidade é construída pela racialização da pobreza. O corpo preto, periférico, favelado — esse é o corpo que o Estado entende como descartável. E descartou.
O que vemos é um projeto. Um projeto higienista, cristofascista, moralista, onde o sofrimento é atribuído à culpa, e a miséria, à preguiça. Um projeto mantido por elites brancas, religiosas, conservadoras, herdeiras do latifúndio e da escravidão, que se dizem cristãs, mas usam a cruz para justificar chacinas.
Essa mesma elite financia campanhas, pauta a imprensa, legisla sobre segurança e ordena a morte à distância — sem sujar as mãos. O resto é feito por braços armados, legitimados pelo medo, pelo racismo e pela desinformação. A sociedade aplaude a ação “enérgica” da polícia enquanto enterra mães, filhos e bebês de barrigas alvejadas.
Não foi apenas Kathleen que foi assassinada. Foi seu bebê. Foi sua comunidade. Foi o direito de existir. Foi o futuro que ela carregava dentro do corpo. E o mais perverso: a decisão judicial não nega apenas o crime — ela afirma que o sistema tem permissão para repetir. Ela é um salvo-conduto para a próxima bala.
Enquanto isso, a imprensa tradicional segue domesticada, seletiva, cuidadosa ao noticiar. A mesma que estampa nomes de vítimas brancas com emoção, reproduz a morte de corpos pretos com frieza estatística. Como se fossem dados e não pessoas. Como se fossem números e não histórias interrompidas.
O nome de Kathleen Romeu precisa ecoar como símbolo. Símbolo da falência moral do Estado, da covardia institucional e da urgência em romper com essa ordem genocida. Não basta lamentar. É preciso denunciar, organizar, incendiar debates, ocupar espaços, desconstruir mitos.
A justiça não virá de dentro do sistema. A justiça virá quando o sistema for confrontado por completo. Quando as favelas não forem mais vistas como zonas de guerra, mas como territórios de vida. Quando os filhos dos escravocratas deixarem de governar com mãos de ferro e discursos de Deus.
Kathleen Romeu não será apagada.
Seu nome não será esquecido.
Porque ela é mais do que vítima — é prova.
É denúncia viva de um país que ainda mata para manter o poder nas mesmas mãos desde 1500.