Estudo revela que favelas no Brasil movimentam R$ 300 bilhões por ano e mantêm alto índice de otimismo entre moradores.

Os dados impressionam: as favelas brasileiras movimentam cerca de R$ 300 bilhões por ano, segundo levantamento do Instituto Data Favela. E mais: 90% dos moradores dizem estar otimistas com o futuro. À primeira vista, esses números soam como uma vitória, quase um grito de independência econômica — mas, olhando com mais atenção, eles revelam uma realidade muito mais complexa, contraditória e politicamente explosiva.

Porque se há tanto dinheiro circulando, por que ainda falta saneamento básico, escola de qualidade, mobilidade urbana, saúde decente e segurança pública real nesses territórios? Para onde está indo essa riqueza toda? E quem, de fato, lucra com ela?

A verdade é que esse dado é tão potente quanto incômodo. Ele escancara que a favela não é pobre: ela é roubada.

Favela rica, Estado ausente

O problema nunca foi falta de dinheiro. Foi e sempre será má distribuição, negligência estatal e lógica colonial. A economia das favelas pulsa com força porque o povo brasileiro — em sua maioria preta, nordestina, indígena e periférica — aprendeu a criar na falta, a reinventar na ausência, a sobreviver na marra.

Mas essa movimentação bilionária não reverte para dentro da favela. O que acontece, na prática, é que o dinheiro gerado pelos moradores é sugado para fora — capturado por bancos, grandes redes varejistas, igrejas e políticos que não pisam no morro a não ser em época de eleição.

Enquanto isso, a água ainda falta, os ônibus não chegam, os becos não têm asfalto, os terreiros são atacados e os tiroteios são rotina. Não é romantizando o sofrimento que se faz justiça social. Não é maquiando estatísticas que se resolve a violência estrutural.

A favela como negócio: quem lucra com a precariedade

A economia da favela é lucrativa — mas não necessariamente para quem vive nela. As grandes redes de cartão de crédito faturam com os juros impagáveis. Bancos tradicionais vendem crédito com taxas extorsivas. Operadoras de celular vendem planos mais caros e piores. E até mesmo o tráfico de drogas se beneficia da ausência do Estado — oferecendo, em muitos lugares, o que o poder público não oferece: proteção, trabalho e até cesta básica.

As igrejas neopentecostais também descobriram o filão. Erguem templos milionários no coração das comunidades, capturam emocionalmente os fiéis com discursos de culpa e obediência, e constroem verdadeiros impérios em cima da dor alheia. Enquanto isso, terreiros de candomblé e umbanda são atacados, deslegitimados, perseguidos e silenciados — muitas vezes com a conivência da polícia e o aplauso das elites religiosas.

A lógica é simples e cruel: a fé do povo virou produto. A pobreza virou mercado. A esperança virou ativo. E tudo isso é sustentado pela força de quem acorda às 5 da manhã, trabalha até às 20h e ainda encontra tempo para acreditar no amanhã.

O otimismo como anestesia política

É claro que é bonito ver 90% dos moradores das favelas dizendo que acreditam no futuro. Mas esse dado também merece ser analisado com lupa. Porque muitas vezes esse otimismo não vem de uma real perspectiva de mudança, mas sim de um discurso ideológico que coloniza a subjetividade.

A chamada “teologia da prosperidade”, por exemplo, ensina que a pobreza é culpa do indivíduo. Se você não tem, é porque não crê o suficiente. Se você sofre, é porque está “fora da bênção”. Esse tipo de doutrina, amplamente difundida nas favelas, culpabiliza o pobre e blinda o sistema.

Além disso, esse otimismo também pode ser um mecanismo de sobrevivência psíquica. Quando tudo ao redor ruge miséria, abandono e violência, acreditar que amanhã será melhor se torna uma questão de saúde mental. Mas essa fé individual não pode substituir as transformações coletivas e estruturais que o país deve às periferias.

A arquitetura do abandono é intencional

É importante compreender que a ausência do Estado nas favelas não é falha: é projeto. Manter os territórios sem asfalto, sem saneamento e sem transporte eficiente é uma forma de controle social. Afinal, um povo ocupado em sobreviver não tem tempo de se organizar politicamente.

Mais do que isso: a precariedade estética reforça o estigma. Fios pendurados, casas sem reboco, ruas sem nome — tudo isso é usado para justificar o preconceito e a violência policial. A favela é intencionalmente mostrada como “bagunçada” para que o discurso da repressão ganhe força.

Enquanto isso, o funk é criminalizado, o candomblé é demonizado, o saber popular é silenciado. E o Estado continua agindo não como garantidor de direitos, mas como administrador da morte. A chamada “guerra às drogas” nada mais é do que uma guerra contra o povo preto e pobre.

A potência existe, mas precisa ser descolonizada

Sim, há uma potência gigantesca nas favelas. Sim, elas produzem moda, arte, gastronomia, tecnologia, cultura, espiritualidade. Sim, há milhares de lideranças comunitárias, projetos sociais, cooperativas, coletivos de mídia, rodas de leitura e de samba que são sementes de outro mundo possível.

Mas essa potência precisa ser descolonizada. Não adianta apenas reconhecer que há R$ 300 bilhões circulando. É preciso perguntar: quem controla esse dinheiro? Quem decide seu destino? Quem define as narrativas sobre a favela?

Sem redistribuição de poder, de renda, de território e de narrativa, os números viram maquiagem. A verdadeira revolução virá quando os recursos permanecerem na quebrada, quando os terreiros puderem existir sem medo, quando a educação libertadora substituir a doutrinação religiosa e quando o Estado deixar de agir como carcereiro.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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