6.500 reais: o preço para matar um trabalhador preto no Brasil.

Vivemos em um país onde um policial militar paga 6.500 reais de fiança após assassinar, com um único tiro, um trabalhador preto que voltava para casa com uma marmita e um livro nas mãos. Esse é o valor colocado pela justiça brasileira para devolver à liberdade o PM que matou Guilherme Dias Santos Ferreira — jovem de ascendência africana que, em Parelheiros, na periferia da zona sul de São Paulo, só queria chegar em segurança depois de mais um dia de serviço.

Não é apenas revoltante. É o retrato fiel de um projeto histórico que se perpetua: o corpo preto continua alvo preferencial da violência policial, da necropolítica e do racismo estrutural que atravessa cada instituição brasileira, da polícia ao judiciário. Quando olhamos para os números, entendemos que Guilherme não é exceção, mas parte de uma estatística tenebrosa.

De acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz, publicado pela Folha de S.Paulo, as mortes cometidas pela polícia em São Paulo cresceram 78% só em 2024. E, ainda mais alarmante, 2 de cada 3 vítimas são pessoas pretas. O mesmo relatório destaca que esses números não surgem do nada: eles refletem uma lógica de “segurança pública” montada para proteger a propriedade e os privilégios de uma minoria, mesmo que isso custe a vida de quem tem a pele mais escura.

O site Alma Preta Jornalismo foi além: em 2024, sob a gestão de Tarcísio, a PM paulista matou mais e prendeu menos. Resultado? Pessoas pretas somaram 63% dos mortos pela polícia no estado. Isso escancara uma prática antiga, quase naturalizada: é mais fácil exterminar do que garantir direitos, é mais simples atirar do que prender, é mais conveniente enterrar estatísticas do que promover cidadania.

Os dados nacionais também não perdoam. O g1, com base no Instituto Sou da Paz, mostrou que a taxa de assassinato de homens pretos por arma de fogo no Brasil é três vezes maior do que a de homens brancos. São 44,7 mortes por 100 mil habitantes contra 14,7. Um abismo inaceitável para quem insiste em repetir o discurso mentiroso de “igualdade racial” no país.

Guilherme: mais um na lista dos que não voltaram para casa

Guilherme não carregava arma. Carregava um livro, uma Bíblia, talheres, marmita e sua própria dignidade de trabalhador. Tinha postado minutos antes uma foto do relógio de ponto, às 22h28, comemorando o fim do expediente. Às 22h35, estava morto. O policial alegou “erro de percepção” — uma desculpa velha, rotineira, que sempre encontra eco em delegacias e fóruns pelo país. Um termo técnico que serve para atenuar o que na prática é execução sumária.

O que revolta não é só o gatilho fácil do PM. É a conivência estrutural que o cerca: o BO (boletim de ocorrência) que suaviza a tragédia, a justiça que define o crime como homicídio culposo (quando não há intenção de matar), a fiança irrisória que libera o assassino em questão de horas.

Imagine inverter o quadro: um jovem branco, saindo do trabalho em Moema, morto por um policial que depois paga 6.500 reais e vai para casa assistir à novela. Seria manchete internacional, teria pronunciamento urgente do governador, coletiva com a cúpula da segurança, talvez até intervenção federal. Mas quando o morto é preto, de periferia, o silêncio institucional vira quase regra. E a população se acostuma, anestesiada pela repetição desses casos.

O racismo não é falha, é o próprio motor do sistema

É preciso repetir, porque a sociedade insiste em esquecer: a polícia brasileira foi criada para proteger o patrimônio da elite branca, vigiando e reprimindo a massa trabalhadora, sobretudo a preta. Não é coincidência que a primeira força policial do país, a Guarda Real de Polícia, surgida ainda no período colonial, tivesse como uma de suas principais funções perseguir e capturar pessoas africanas escravizadas que fugiam do cativeiro.

De lá para cá, mudou o uniforme, mas não mudou o alvo. O que vemos hoje é a continuidade desse projeto. O nome moderno é “guerra às drogas”, o que soa mais palatável, mas o resultado é o mesmo: corpos pretos tombando em vielas, becos, favelas, sob a justificativa de combate ao crime.

Quando Tarcísio — ou qualquer outro governante — exalta operações letais como símbolo de eficiência, está assinando embaixo do genocídio da população preta. Não há outro nome para uma política que sistematicamente tira a vida de pessoas de ascendência africana, que são majoria entre as vítimas de homicídios no país.

6.500 reais: o que isso diz sobre o valor da vida preta?

O valor da fiança não é só um detalhe jurídico. É um símbolo do que o Estado brasileiro entende como preço da vida de um homem preto. Quando a justiça estipula 6.500 reais para colocar em liberdade um policial que matou um trabalhador indefeso, está mandando um recado claro: vidas pretas valem pouco.

Para quem vive nas periferias, o sinal é assustador: se amanhã outro PM puxar o gatilho e alegar “confusão”, não faltarão brechas legais, laudos duvidosos e promotores complacentes para garantir que ele responda em liberdade — ou nem responda. E o ciclo se repete.

Esse mecanismo, profundamente racista, garante a manutenção de uma ordem social onde pessoas pretas seguem servindo de mão de obra barata e descartável. Onde são vigiadas nos shoppings, paradas em blitzes seletivas, seguidas por seguranças em supermercados e, em última instância, assassinadas sem que isso cause indignação suficiente para mudar a estrutura.

Não é excesso, é política de Estado

A gestão Tarcísio, assim como tantas outras, defende seus policiais com a retórica da “estrita legalidade” e dos “procedimentos técnicos”. Mas como confiar em procedimentos técnicos quando eles resultam, ano após ano, em mais pessoas pretas mortas do que qualquer outro grupo?

Os números do Instituto Sou da Paz provam que não é exceção, é regra. Não é falha individual, é engrenagem. Não é desvio, é política de Estado. E quem paga essa conta, diariamente, são famílias pretas despedaçadas pela ausência, pelo luto, pela fome que se instala quando o provedor não volta pra casa.

Enquanto isso, parte da sociedade branca prefere repetir bordões rasos como “bandido bom é bandido morto” ou “quem não deve não teme”, ignorando que Guilherme não devia nada. E mesmo assim teve o corpo tombado no asfalto.

O papel da mídia, da justiça e de cada um de nós

Também é hora de apontar para o papel da imprensa, que muitas vezes normaliza esses crimes ao usar termos como “troca de tiros” ou “confronto”, mesmo quando só há balas disparadas de um lado. Ou que prefere não dar rosto e história às vítimas, tornando-as apenas números em estatísticas que ninguém lê.

E o sistema de justiça, tão rápido para criminalizar o pequeno furto praticado por jovens pretos, mostra incrível lentidão (ou benevolência) quando se trata de julgar policiais. O resultado é previsível: raríssimos são condenados, a maioria segue fardada, armada e nas ruas.

Mas também cabe a nós, como sociedade, romper esse ciclo. Parar de achar normal. Parar de justificar. Parar de usar o medo como desculpa para apoiar políticas que matam seletivamente. Reconhecer que há um projeto colonial, racista e classista em curso, que só será desmontado com organização, pressão política e mudanças estruturais profundas.

Guilherme vive

Hoje, Guilherme Dias Santos Ferreira virou mais um nome na longa lista dos que não voltaram para casa. Mas ele não pode ser esquecido. Ele é símbolo de todas as vidas pretas interrompidas pelo racismo armado do Estado. Símbolo da urgência em repensarmos profundamente o modelo de segurança pública, que não protege, mas assassina.

Enquanto não houver reparação histórica real, enquanto não houver mudanças radicais na formação policial, enquanto governadores seguirem medindo sucesso pela contagem de cadáveres, o Brasil seguirá como o cemitério de sonhos pretos.

6.500 reais não pagam a dor da mãe de Guilherme. Não alimentam o filho que ficou sem o pai. Não confortam amigos, irmãos e colegas de trabalho. É apenas o preço que o Estado definiu para manter tudo exatamente como está.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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