Beyoncé errou feio: Buffalo Soldiers não são heróis.

Amiga importância de estudar história.

Tenho dito, e repito sem rodeios: nem todo irmão é irmão. Dizer isso incomoda, fere sensibilidades frágeis e rompe a ilusão romantizada da irmandade automática entre todos os que descendem de África. Mas é necessário. É verdade — uma verdade brutal — que nós, filhos e filhas da diáspora africana, sofremos horrores indescritíveis nas mãos dos impérios coloniais. Mas também é verdade que, ao longo dessa longa noite histórica, houve os que escolheram o lado do chicote. Houve Ganga Zumba, que traiu Zumbi dos Palmares em nome de uma paz fabricada com o inimigo. Houve o amigo de infância que entregou Thomas Sankara, o traidor que manchou com sangue a utopia mais luminosa que Burkina Faso já viu. Houve Malcolm X, morto por mãos pretas enquanto falava sobre a libertação dos pretos. É desse ponto de dor e lucidez que falo. E é exatamente por isso que considero inadmissível que uma figura como Beyoncé — que alcançou um lugar quase mítico no imaginário global, que virou símbolo de excelência preta — cometa o equívoco colossal de estampar no peito a imagem dos Buffalo Soldiers, homens pretos que lutaram no exército colonial dos Estados Unidos exterminando povos indígenas no século XIX. Isso não é só um erro de informação. É uma afronta à memória. É, sim, motivo de crítica. E estou entre os que a fazem com consciência, porque silenciar diante disso é permitir que a história continue sendo escrita com sangue e apagamento.

Não é a primeira vez que Beyoncé se propõe a fazer resgates históricos e visuais voltados ao povo preto. De “Lemonade” a “Black Is King”, sua trajetória recente é marcada por estética africana, reinterpretações de arquétipos ancestrais e uma exaltação legítima da realeza preta. Mas há uma diferença abismal entre resgatar raízes e celebrar soldados que serviram ao império. Os Buffalo Soldiers não foram heróis. Foram peças do sistema colonial. Aplaudi-los como símbolos de resistência é como homenagear capitães do mato por usarem turbante ou carregarem tambores enquanto perseguiam seus irmãos.

Há uma camada profunda e pouco explorada nessa discussão: o papel que homens pretos tiveram — e ainda têm — como agentes da dominação. Homens pretos que, em troca de prestígio, farda e algum reconhecimento, escolheram se alinhar aos algozes de seus ancestrais. Não se trata de demonizá-los, mas de entender como o projeto colonial é sofisticado o suficiente para corromper mesmo aqueles que deveriam estar do lado da ruptura. A história dos Buffalo Soldiers não pode ser contada como se fossem mártires da liberdade, quando na verdade foram soldados do genocídio indígena.

Quem conhece o mínimo da história sabe: o exército dos Estados Unidos não é símbolo de liberdade. É máquina de guerra, expansão e pilhagem. Os Buffalo Soldiers foram criados em 1866, logo após a Guerra Civil. Com a escravidão formal abolida, o Estado buscava novos braços para continuar a colonização do Oeste. Homens pretos recém-libertos, sem perspectivas econômicas, foram aliciados. Prometia-se salário, respeito e cidadania em troca da destruição de comunidades originárias. Essa troca — trágica e simbólica — mostra como a colonização transforma vítimas em ferramentas.

Durante décadas, esses batalhões participaram de campanhas brutais contra os povos indígenas, como os Apache, os Cheyenne, os Comanche. Atacavam aldeias, incendiavam territórios sagrados, escoltavam colonos brancos e reprimiam rebeliões. Muitos deles foram recompensados com medalhas. Outros morreram sem glória, cumprindo ordens de um império que os via como descartáveis. A ironia cruel é que lutavam para um país que pouco antes os chicoteava, agora os fardava. O que muda é o uniforme — o sistema segue o mesmo.

Chamar esses homens de heróis é ignorar o princípio mais básico da justiça histórica: quem serve à dominação, ainda que oprimido, não pode ser símbolo de libertação. A opressão também se camufla de oportunidade. Capitães do mato também eram pretos. E também tinham seus argumentos: melhor caçar o irmão do que ser caçado com ele. Essa lógica sobrevive até hoje, nas figuras de pretos usados como fachada para empresas racistas, governos genocidas ou campanhas publicitárias que querem parecer diversas sem mudar nada em sua estrutura.

O erro de Beyoncé, portanto, não é um deslize qualquer. É a escolha de celebrar soldados imperiais como se fossem guerreiros sagrados. É transformar executores da colonização em ícones culturais. E é ainda mais grave porque sua imagem tem alcance global. Milhões de jovens pretos, de diferentes partes do mundo, a veem como referência. Quando ela veste uma camiseta com a frase “Buffalo Soldiers”, sem nenhum contexto, sem nenhuma crítica, ela não está apenas contando uma história — ela está moldando imaginários.

É preciso romper com essa romantização rasa. Nem todo homem preto em farda é símbolo de poder. Às vezes, é só mais um corpo a serviço da engrenagem. A farda não transforma o escravizado em libertador. Muitas vezes, transforma apenas em carcereiro. O que está em jogo não é apenas a imagem de Beyoncé, mas a forma como escolhemos nossos símbolos. A luta preta precisa de referências verdadeiras, não de ícones fabricados por Hollywood, moldados pelo Estado ou lavados pela indústria da moda.

Um povo que não revisita criticamente sua história está condenado a repeti-la. Quantos de nós ainda reproduzem discursos coloniais em nome de ascensão? Quantas vezes confundimos sucesso com lealdade ao sistema? Beyoncé, com toda sua genialidade artística, não está imune a isso. Mas é justamente por sua influência que o erro se torna mais grave. O mínimo que se espera de uma figura pública com seu alcance é responsabilidade simbólica. O que ela veste não é só estética — é discurso.

Fosse uma figura branca exaltando os Buffalo Soldiers, o debate seria outro. Mas como se trata de uma mulher preta celebrando homens pretos, muitos hesitam em criticar. Esse é mais um efeito colateral da política de representatividade vazia. A crítica se torna tabu. E o que deveria ser analisado com lucidez vira idolatria. É preciso maturidade coletiva para entender que apontar erros de figuras pretas não é destruir a imagem delas — é construir pensamento crítico, base da verdadeira libertação.

No caso dos Buffalo Soldiers, a crítica não deve recair apenas sobre Beyoncé, mas sobre toda a estrutura que permite que o massacre indígena seja apagado com uma estampa de camiseta. E que figuras de poder — mesmo as que vêm da quebrada, da periferia, do gueto — sejam usadas para reabilitar a imagem do império. Isso não é novidade. Malcolm X já alertava: o sistema premia o preto obediente. Thomas Sankara dizia que a colonização não termina enquanto o colonizado continuar pensando como o colonizador.

Estamos falando de memória. E memória não é enfeite. É arma. É cura. É justiça. Quando um povo esquece quem o feriu — ou pior, quando transforma o feridor em herói — algo profundo se rompe. É isso que está em jogo. E é por isso que, por mais que amemos Beyoncé, precisamos dizer sem rodeios: ela errou. E feio. E é papel de quem tem consciência levantar essa conversa.

O caminho da libertação não é pavimentado apenas com autoestima e orgulho racial. É preciso consciência histórica, coragem para encarar verdades desconfortáveis e ética radical com nossos ancestrais e com os povos originários. Celebrar os Buffalo Soldiers é desonrar os corpos que eles ajudaram a enterrar. Não há turbante ou batida de tambor que purifique isso.

A memória dos povos indígenas que tombaram sob o fogo desses soldados não será apagada por um look de turnê. Eles merecem mais do que silêncio. E nós também.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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