Corpos em Cativeiro: A Escravidão Sexual Silenciada dos Africanos.

A história da escravidão no Brasil é contada muitas vezes a partir da perspectiva econômica, como se o sofrimento humano pudesse ser traduzido em números de produção, engenhos e navios negreiros. Mas há um capítulo da diáspora africana que foi deliberadamente apagado, censurado ou suavizado: o da escravidão sexual. Não estamos falando apenas de violência. Estamos falando da sistematização da perversão colonial, da objetificação reprodutiva e do uso de corpos pretos como ferramentas de entretenimento, controle e dominação.

Não se trata de ficção.São registros, depoimentos, documentos e testemunhos que escorrem das rachaduras do silêncio histórico. Um passado que se estende como sombra até o presente. Porque o corpo de africanos escravizados — homens, mulheres e crianças — não foi apenas forçado ao trabalho: foi invadido, colonizado, manipulado em sua dignidade mais íntima. Este artigo resgata sete verdades sobre esse terror silencioso, costurando-as com reflexão crítica, ancestralidade e compromisso com a justiça histórica.

1. A reprodução forçada como estratégia de lucro

A fertilidade das mulheres africanas escravizadas era minuciosamente planejada pelos senhores de engenho. Seu útero não lhes pertencia. Era um campo de produção, uma extensão viva do sistema escravista. Muitas eram forçadas a engravidar o quanto antes. Aos 13 anos, para gerar mão de obra gratuita — crianças que nasciam já marcadas como mercadorias humanas.

Essa prática não era exceção: era política. Ao garantir que cada mulher tivesse quatro a cinco filhos até os 20 anos, os senhores asseguravam seu “patrimônio” expandido. Em algumas fazendas, prometia-se liberdade como moeda de chantagem para aquelas que gerassem 15 ou mais crianças. A liberdade, nesse contexto, era apenas outra ilusão cruel — oferecida para controlar, mas raramente concedida.

2. Os homens africanos como “reprodutores designados”

Os corpos masculinos também eram explorados, não só no esforço físico, mas na reprodução compulsória. Homens com genitálias consideradas “proeminentes” eram escolhidos a dedo para servir como reprodutores. Não havia desejo, escolha ou dignidade nesse processo: era pura domesticação forçada.

Aos 15 anos, os meninos passavam por inspeções — uma espécie de “triagem genética”. Os que não atendiam às expectativas eram vendidos ou mutilados. Já os considerados aptos eram obrigados a engravidar no mínimo 12 mulheres por ano, durante cinco anos consecutivos. Roque José Florêncio, por exemplo, foi um desses homens. Ele viveu em uma fazenda no interior de São Paulo e morreu apenas em 1958. Segundo registros orais, foi forçado a gerar mais de 200 filhos.

3. O estupro como arma de guerra psicológica

Não era raro que homens africanos fossem forçados a praticar atos sexuais diante de suas esposas ou familiares, às vezes com as próprias esposas dos senhores ou com outras mulheres escravizadas. Esse tipo de “ritual” visava destruir a psique coletiva. Servia como demonstração de poder absoluto e como mecanismo de humilhação pública.

Esse terror também acontecia no sentido inverso: senhores invadiam sexualmente homens africanos na frente de todos, como forma de “domesticar” os mais fortes ou rebeldes. Essa prática cruel e desumanizante era usada para desmontar qualquer resquício de identidade, virilidade e resistência. A violação não era apenas física — era também espiritual e política.

4. A perversidade travestida de entretenimento

Em muitas regiões do Brasil colonial, era comum que senhores de escravizados organizassem “espetáculos” para seus convidados após missas dominicais ou reuniões sociais. Em pleno ambiente cristão, corpos africanos eram utilizados como peças de prazer.

Esses “entretenimentos” envolviam orgias forçadas, onde homens e mulheres escravizados eram obrigados a se expor sexualmente sob coerção. O abuso não era praticado às escondidas — era uma celebração do domínio branco sobre corpos racializados. A herança disso ainda vibra nas camadas mais inconscientes da sociedade brasileira, onde a fetichização de corpos pretos ainda encontra raízes históricas profundas.

5. A perversidade da “Pera da Angústia”

Pouco conhecido pela maioria, o instrumento chamado “Pera da Angústia” era um artefato criado por inquisidores cristãos europeus, posteriormente utilizado no Brasil contra escravizados. Era introduzido no reto ou na boca das vítimas como forma de punição, especialmente contra aqueles que recusavam “favores sexuais” aos senhores.

A alegação de que senhores de escravizados homossexuais também impunham relações forçadas com homens africanos não é fantasia: é parte documentada da brutalidade colonial. A Pera da Angústia representava a domesticação absoluta do corpo, usada para silenciar recusas, esmagar resistências e mutilar a alma.

6. Mulheres bonitas: prêmio e punição

Mulheres africanas consideradas “bonitas” eram compradas com finalidades específicas. Em geral, recebiam certo “privilégio” — melhores roupas, alimentação — mas eram mantidas sob constante vigilância. As esposas dos senhores, tomadas por ciúmes ou competição, frequentemente cometiam atrocidades contra elas.

Há relatos de mulheres que tiveram seus filhos decapitados ou espancados até a morte diante de seus olhos por ciúmes da esposa do senhor de engenho. Ou seja, mesmo as que estavam em posição “privilegiada” dentro da senzala, não escapavam da máquina de violência.

7. A reprodução como mecanismo de extermínio psicológico

O que parece um paradoxo é, na verdade, parte do mesmo ciclo de opressão. A reprodução forçada era uma forma de expandir a escravidão e, ao mesmo tempo, destruir qualquer possibilidade de ancestralidade digna. Os filhos nascidos do estupro eram arrancados das mães, vendidos ainda pequenos, sem qualquer registro ou afeto.

Não havia maternidade. Não havia paternidade. Havia apenas um sistema reprodutivo humano acoplado a um projeto econômico e genocida. A estratégia era clara: colonizar até o sangue. Impedir que a memória se firmasse. A única coisa que se mantinha era a dor.

Cena da minissérie da Globo Liberdade, Liberdade.

A escravidão sexual dos africanos no Brasil não é apenas um capítulo isolado de horrores. É um sistema que moldou as estruturas de poder, gênero, sexualidade e raça no país. Um sistema que construiu a imagem do corpo preto como objeto, como fetiche, como mercadoria — e que ainda ecoa na cultura, nas relações, na violência sexual e no racismo estrutural.

Falar sobre isso não é reviver a dor. É impedir que ela continue. É lembrar que os corpos violados têm nome, têm alma, e que sua resistência é também a nossa herança. O apagamento dessa história não é acidental. Ele é parte do mesmo projeto de dominação que começou no porão dos navios.

Não se trata de vitimismo. Trata-se de verdade. E a verdade, por mais dura que seja, é o único caminho para uma consciência real.

Jamais esquecer. Jamais silenciar.

Fontes e Referências

  1. NEVES, Lélia Gonzalez. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
    – Aborda como a sexualidade da mulher preta foi construída socialmente a partir da escravidão.
  2. RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Sueli Carneiro/Filhos do Vento, 2017.
    – Discorre sobre os silenciamentos históricos sofridos pelas mulheres negras, inclusive em relação à violência sexual.
  3. DOS SANTOS, Joice Berth. Empoderamento. São Paulo: Pólen, 2018.
    – Traz reflexões sobre o corpo negro, principalmente feminino, como território político e violado.
  4. FLORES, Josiane C. Sexualidade, Gênero e Escravidão no Brasil: o corpo escravizado como campo de dominação. Dissertação de Mestrado, UFSC, 2012.
    – Trabalho acadêmico aprofundado sobre violência sexual contra africanos escravizados.
  5. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
    – Inclui relatos sobre o Brasil imperial e menções à erotização da escravidão.
  6. MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988.
    – Analisa o controle da reprodução e a exploração do corpo negro como estrutura social.
  7. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma Perspectiva de Gênero. Geledés Instituto da Mulher Negra, 2003.
    – Fala diretamente da condição da mulher africana durante e após a escravidão.
  8. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um Fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
    – Traz relatos sobre a formação de quilombos como fuga do abuso, inclusive sexual.
  9. BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Caderno CRH, v. 21, n. 53, 2008.
    – Embora ocidental, contribui para pensar o corpo como lugar político e disciplinado.
  10. Documentário – A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo (2000).
    – Mostra como a imagem do povo preto foi moldada de forma estereotipada desde a escravidão, inclusive no cinema.
  11. Reportagem especial – Revista Trip:
    “Os filhos do estupro” (edição sobre descendentes de violência sexual na escravidão).
    Disponível em: trip.uol.com.br
  12. Artigo histórico – Revista de História da Biblioteca Nacional:
    “A outra escravidão: corpos negros, violência sexual e a reprodução forçada no Brasil colonial”.
    – Volume 5, número 58, maio de 2011.
Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

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