Trajetória de uma Filósofa Pan-africanista e Mulher Negra Pioneira
Zenaide Cecília Pereira da Silva, mais conhecida como Zenaide Silva ou Zenaide Zen, nasceu em Campinas (SP) em 19 de janeiro de 1956 . Mulher negra oriunda de favela, superou inúmeras barreiras sociais e raciais ao longo da vida. Formou-se em artes cênicas nos Estados Unidos – segundo fontes, na Universidade de Harvard – e construiu uma carreira multifacetada nas artes e na educação. Nos anos 1970, integrou o grupo teatral negro Evolução, destacando-se como bailarina em espetáculos marcantes e engajados do movimento negro brasileiro . Seu talento a levou aos palcos e telas: participou de peças renomadas e atuou na televisão em novelas e minisséries, chegando a apresentar o programa cultural “Outras Palavras” na TV Bandeirantes em 1982 . Também deixou sua marca na TV Globo, onde atuou em produções como Anarquistas, Graças a Deus (1984) e Tenda dos Milagres (1985) .
Apesar do sucesso artístico, Zenaide nunca se afastou de suas raízes e do ativismo. Tornou-se uma voz ativa no movimento negro, inclusive durante um período em que viveu na Alemanha, onde liderou iniciativas de resistência negra . Nos Estados Unidos, aprofundou seus estudos em Afrocentricidade, teoria que busca centralizar a perspectiva africana na compreensão da história e da cultura. Ao retornar ao Brasil, sonhava em difundir esses conhecimentos afrocentrados nas comunidades e salas de aula, aproveitando inclusive os marcos legais como a Lei 10.639/03 (que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira) . “Atualmente envolvida com projetos educacionais de formação contínua de professores, Zenaide espera ter a oportunidade de atuar no Brasil em centros comunitários na periferia para introduzir os conhecimentos de afrocentricidade que traz dos Estados Unidos”, anunciava a chamada de sua entrevista no programa Provocações . Essa entrevista, exibida em 2010 na TV Cultura e conduzida pelo icônico Antônio Abujamra, se tornaria um marco de sua trajetória – um momento em que Zenaide Silva pôde expor com fervor seu pensamento crítico e decolonial para um público mais amplo.
Infelizmente, Zenaide faleceu prematuramente em 17 de setembro de 2011, aos 55 anos, vítima de um AVC . Sua partida impediu que ela visse plenamente os frutos de sua missão de divulgar a afrocentricidade. Ainda assim, seu legado intelectual e espiritual permanece vivo. A prova disso é o ressurgimento viral de suas falas poderosas nas redes sociais anos após sua morte, inspirando novas gerações. Zenaide Silva é hoje celebrada como uma filósofa do povo, referência fundamental para o pensamento decolonial e afrocentrado no Brasil.
“Não existe filosofia grega”: crítica ao eurocentrismo, epistemicídio e resgate do pensamento africano
Em sua participação no Provocações (2010), Zenaide Silva fez uma afirmação polêmica e instigante: “Não existe filosofia grega.” Por trás dessa frase provocativa estava uma crítica profunda ao eurocentrismo acadêmico e ao epistemicídio – ou seja, a negação e destruição dos saberes de povos não europeus. Zenaide argumentava que o que chamamos de filosofia grega nada mais é do que conhecimento africano apropriado pelos gregos. Segundo ela, os antigos pensadores helênicos beberam das fontes de conhecimento do Egito e de outras civilizações africanas, mas a história eurocêntrica “virou de ponta-cabeça” essa realidade, apagando as origens negras do pensamento . Como ela mesma explicava de forma contundente, os gregos “roubaram” a sabedoria egípcia e a adaptaram às conveniências da Europa branca – em outras palavras, a filosofia grega não passa de pirataria grega.
Zenaide embasou sua crítica mencionando símbolos e referências da antiguidade africana. Ela destacou, por exemplo, que Ísis, a deusa suprema do Egito antigo, era representada como uma mulher negra. Ísis, que para os egípcios era a grande mãe divina, teve seus atributos apropriados e reinterpretados pela cultura europeia ao longo dos séculos . Para Zenaide, até mesmo os termos como “História” e “Filosofia” refletem uma distorção patriarcal e eurocêntrica: “desconstrói palavras (como História, Filosofia, etc.), que teriam sido criadas para relatar os fatos e os pensamentos de uma sociedade paternalista, em prejuízo de sua origem na ‘grande mãe’, Ísis, africana” . Ou seja, conceitos fundadores do conhecimento ocidental carregariam um apagamento de suas raízes matriciais africanas.
Essa posição de Zenaide Silva dialoga com uma corrente de pensadores pan-africanistas e afrocentrados que buscaram reescrever a história da filosofia a partir de uma perspectiva não eurocêntrica. Desde a década de 1950, o intelectual senegalês Cheikh Anta Diop já defendia que a filosofia não nasceu na Grécia, e sim no antigo Egito (chamado de Kemet pelos africanos) . Diop apresentou evidências de que muitos conceitos de Sócrates, Platão e Aristóteles tinham raízes egípcias . Por exemplo, a noção de maat – princípio de ordem, justiça e verdade na ética egípcia – antecede e influenciou a ideia de justiça presente na filosofia platônica . Sábios africanos como Ptahhotep, que viveu cerca de 2400 a.C., escreveram tratados de sabedoria contendo reflexões morais e existenciais muito antes de os gregos formularem suas filosofias . No entanto, a tradição ocidental relegou esses saberes ao esquecimento. A hegemonia cultural europeia, consolidada desde a era colonial, promoveu um silenciamento sistemático do pensamento africano. Como destaca um estudo sobre o ensino de filosofia no Brasil, há “um profundo silenciamento e exclusão do pensamento produzido no continente africano” nos currículos tradicionais . Esse apagamento é parte do epistemicídio: o processo de destruição ou invalidação dos conhecimentos de povos subordinados. Em outras palavras, negou-se aos africanos até mesmo o status de sujeitos de conhecimento, num pacto implícito de racismo intelectual. A filósofa Sueli Carneiro define epistemicídio justamente como “a destruição das formas de conhecimento que um povo desenvolve através de sua cultura” – definição que evidencia como a filosofia europeia se construiu muitas vezes negando legitimidade às fontes não europeias.
Zenaide Silva, ao dizer que “não existe filosofia grega”, estava invertendo corajosamente a lógica eurocêntrica. Sua provocação expôs o vício de origem na narrativa acadêmica euro-ocidental: a ideia de que a filosofia seria um invento exclusivo dos gregos antigos, sem débito a outras civilizações. Ela denunciou esse mito, reivindicando crédito aos povos africanos e afro-diaspóricos que contribuíram para o pensamento humano mas foram invisibilizados. Ao recomendar no programa a leitura de “Stolen Legacy” (Legado Roubado), livro clássico do filósofo afro-americano George G. M. James, Zenaide endossou a tese de que a chamada filosofia grega foi apropriada do Egito . George G. M. James, assim como Diop, argumenta que os conhecimentos desenvolvidos pelos egípcios – em ciência, religião, ética e metafísica – foram posteriormente reivindicados pelos gregos como se fossem criações próprias, devido à perda e ocultação deliberada das fontes originais africanas. Zenaide trouxe esse debate erudito para o grande público com uma linguagem acessível e apaixonada, fazendo muitos espectadores questionarem pela primeira vez os fundamentos eurocêntricos de sua educação.
Além da crítica, o discurso de Zenaide Silva é marcado por uma visão afirmativa e esperançosa. Ela não buscava apenas denunciar o eurocentrismo, mas também enaltecer a herança africana presente no Brasil e no mundo. Em sua entrevista, proclamou: “O Brasil é uma África que pode dar certo. Somos o verdadeiro arco-íris cósmico” . Via em nossa diversidade racial e cultural uma oportunidade de construir algo novo e belo. Propôs, poeticamente, “Vamos criar o belo a partir deste caos” – um chamado para que, a partir do caos histórico causado pelo racismo e pela colonização, pudéssemos ressurgir com uma civilização baseada na justiça e na valorização de todas as matrizes culturais.
Legado e relevância de Zenaide Silva para o pensamento decolonial
O legado de Zenaide Silva reside na coragem de questionar narrativas estabelecidas e na afirmação do valor do pensamento africano e afrodiásporico. Sua postura antecipa e inspira os atuais movimentos de descolonização do saber. Cada vez mais, intelectuais e educadores têm voltado o olhar para a filosofia africana, incorporando pensadores como Ptahhotep, Confúcio africano da antiguidade, ou contemporâneos como Frantz Fanon e Ngũgĩ wa Thiong’o, nas discussões filosóficas ao lado de Platão e Kant. No contexto brasileiro, a influência de Zenaide se reflete em iniciativas de afrorreferenciamento do currículo – que buscam cumprir o ideal de lei 10.639/03 de forma ampla, trazendo autores negros e africanos para o centro do debate filosófico.
Zenaide Silva foi uma mulher à frente de seu tempo. Filósofa popular, griô moderna e guardiã de saberes ancestrais, ela nos deixou a lição de que repensar a história e a filosofia sob uma ótica não eurocêntrica não é apenas um ajuste acadêmico, mas um ato de justiça e de autoafirmação para povos historicamente subjugados. Seu exemplo encoraja uma reflexão crítica: quantos outros Zenaides tiveram suas vozes caladas pelo epistemicídio? E quantos conhecimentos preciosos ainda aguardam ser resgatados das margens da história?
Ao celebrarmos Zenaide Silva, celebramos a resistência do conhecimento negro e indígena, celebramos a pluralidade das filosofias humanas. Sua entrevista em 2010, redescoberta por milhões em 2025, continua sendo uma aula provocativa e necessária. Zenaide nos impele a provocar o status quo e a reivindicar nosso direito de conhecer o mundo a partir de todas as cores do arco-íris cósmico. Mais do que nunca, sua voz ressoa como farol para um pensamento verdadeiramente universal, decolonial e inclusivo, onde a África e suas diásporas ocupem, legitimamente, o lugar de protagonismo que sempre lhes pertenceu.
Vamos criar o belo a partir deste caos. Essa é a provocação e o convite permanente de Zenaide Silva – um convite que ecoa na filosofia, na educação e na construção de um futuro em que a grande mãe África seja honrada em nossa consciência coletiva.